Fingir. Fazer um papel. Atuação, no sentido teátrico. Eis o significado da palavra grega hupokrisis, que originaria no latim hypocrisis e, para o português, hipocrisia. Uma palavra estritamente ligada à ética. É considerada o ato de fingir seguir algo que, na verdade, não segue, seja ele uma crença, ideologia etc. Dela, surge o hipócrita: aquele que pratica a hipocrisia. Assim, toda uma cadeia de caracterização moral é criada e a hipocrisia passa a assumir importante papel no comportamento social humano e, por conseguinte, em toda a sociedade.
No cotidiano, uma pessoa é vista como hipócrita se diz crer em algo e, no pessoal, pratica algo que vá na contramão do que foi dito. Vemos isso o tempo todo: “a esquerda é hipócrita”, “feminista e defendendo estuprador? hipócrita” etc. Basicamente, denunciar uma hipocrisia consiste em apontar uma incoerência.
No século XVII, François de La Rochefoucauld, em seu livro “Reflexões ou sentenças e máximas morais”, apresenta uma definição amargamente certeira do comportamento hipócrita: “A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”. Para esse moralista francês, a hipocrisia seria feita para, com supostas virtudes (fingimento), camuflar os vícios, ou seja, os defeitos. Passados 4 séculos, por sorte, a palavra continua tendo o mesmo significado. Todavia, na sociedade do século XXI, essa análise teria de ser aprofundada, pois, na Paris setecentista da nobreza, havia apenas um tipo de virtude: a socialmente aceita. Se era socialmente aceita, era porque representava os padrões da realeza da época e, assim, só existia essa forma de ser agraciado por suas ideias. Na atual conjuntura, pós Revolução Francesa e, por isso, com o espalhamento de ideais iluministas de liberdade ao redor do mundo, ser socialmente aceito não é mais possível. Não no sentido de ser aceito por toda a sociedade. Agrada-se um grego, desagrada-se um troiano. E gregos e troianos convivem e expressam suas ideias. Assim, a hipocrisia passa a ser um instrumento para aceitação por grupo.
As diferenças existem e a hipocrisia acontece. O que se deseja é, sempre, viver em um ambiente democrático, pois, na célebre frase de Winston Churchill “a democracia é o pior dos sistemas, à exceção de todos os outros”. Esse ambiente prevê debates. A arte de debater, dialogar, contrapor ideias, é uma das chaves para exerção da democracia de fato. Por isso, estudar debates, estudar estratégias argumentativas, com falácias e sofismas, é essencial para que se possa estabelecer boas discussões. E o que se observa hoje em muitos debates, ou no pós-debate – que possui extrema relevância, pois as pessoas são, no geral, levadas pelos sentimentos, que são exacerbados após uma discussão -, é a prática de apontar hipocrisias. Devemos, de fato, pontuar nossa opinião baseados em uma hipocrisia apontada? Serão elas de todo ruins? Na verdade, a hipocrisia é indiferente para desvalidar uma ideia ou posicionamento, mas negativa se visando a validar o caráter de uma pessoa.
À priori, a hipocrisia é vista como negativa a todo o tempo. Em situações corriqueiras, não se veem análises positivas ou que defendam o hipócrita. Desde antes, tal qual exemplificado na Bíblia, em que, no Evangelho de Mateus, o termo hipócrita é utilizado como ofensivo, para denegrir uma seita de fariseus, até a atualidade, em que importantes sociólogos, como Avram Noam Chomsky, criticam a hipocrisia, tendo o autor a considerado, na Guerra ao Terror dos EE.UU., uma promovedora da injustiça. Porém não é necessário ir tão longe para entender o porquê da hipocrisia ser tão criticada, basta analisar as sensações humanas que envolvem a percepção dela.
Assim que percebida uma hipocrisia, o perceptor sente-se injustiçado, pois entende que o hipócrita está em uma posição privilegiada que não lhe é devida. O perceptor ou é enganado pelo hipócrita, ou entende que regras, que muitas vezes não são concordadas por este, são aplicadas apenas para si, enquanto aquele não tem que as respeitar. Por tal razão, o sentimento de raiva, uma reação do cérebro decorrendo da sensação de injustiça, é gerado, criando uma extrema repulsa à hipocrisia e ao hipócrita, em geral. Esse sentimento pode ser individual, quando a injustiça é apenas com o perceptor, ou coletivo, quando o sentimento de injustiça for geral. Em ambos os casos, a hipocrisia passa a ser vista como uma razão para repudiar outrem.
Apesar disso, não é certo descartar um argumento caso o seu argumentador seja hipócrita. Ou seja, não devemos desvalidar argumentos caso o defensor desse argumento não o siga de fato. Em primeira análise, em um debate, apontar uma hipocrisia em alguém, principalmente se referente ao argumento que a pessoa está defendendo, é desonestidade intelectual. Isso se deve ao fato de que, em argumentações, trata-se apenas do argumento, desconectando-o de seu argumentador, que atua meramente como um transmissor da ideia – que deve ser tão poderosa que, além de convencer à plateia, deve poder rebater e contra-argumentar. Efetivamente, acusar o argumentador, tentar diminuir ou desvalidar sua imagem trata-se de uma falácia argumentativa das mais antigas, o argumentum ad hominem. Os sofistas, na Grécia antiga, a conheciam tão bem que se tornou uma das estratégias mais praticadas para vencer debates, e segue sendo assim. Há, dentro dessa falácia, um caso específico que trata da hipocrisia, o tu quoque (você também), em que alguém é acusado de praticar algo semelhante ao que critica visando a desvalidar a argumentação. É o tuquoquismo que se apodera das discussões no Brasil. Esse fenômeno é tão repetitivo que já se tornou até meme: o conceito de “Mas e o Lula? E o PT?” ilustra perfeitamente esse caso. Apesar do exemplo icônico, evidentemente o tuquoquismo também faz parte da agenda de defensores de partidos e causas da esquerda. Não se trata de posição política, mas de formação intelectual de uma população que, para defender com seu cordialismo aquilo que julga certo, foge da racionalidade e se resume a apelos que não engrandecem o debate, pois toda falácia, caso não apontada imediatamente pelo acusado ou mediadores, potencialmente encerra o debate: é a lacragem ou a mitagem, dependendo de seu espectro político.
Ainda assim, a hipocrisia é negativa para indivíduos. Aplicar a outras pessoas valores que não se aplicam a você – uma definição de Chomsky para a hipocrisia – pode sinalizar um lapso de empatia. Os sentimentos empáticos são extremamente importantes para o reconhecimento do outro como um ser humano para, dessa forma, desenvolver laços e construir respeito e igualdade. De tal guisa, considerar-se como um indivíduo à parte e agir de forma a ignorar seus próprios valores pode indicar falhas no seu desenvolvimento social e inteligência emocional, fazendo com que suas relações sociais e humanas sejam inferiores.
Não se deve, porém, invalidar o caráter de uma pessoa por ser hipócrita, pois, em certa medida, todos somos ou seremos hipócritas em algum momento, não sendo a hipocrisia, pois, de todo ruim, como um pináculo da falsidade. Já explicado, a hipocrisia é um caso de incoerência. Deve-se entender, ademais, que os seres humanos são seres incoerentes. Não é uma característica humana ser coerente a todo o tempo, pois, muitas vezes, somos motivados, a despeito da racionalidade, pelos nossos sentimentos, emoções e intuições pessoais. Não se trata de naturalizar a hipocrisia para então considerá-la boa – isso seria a falácia do apelo à natureza -, mas sim de normalizá-la para então combatê-la.
Dir-se-ia, tentando contrapor o argumento de que hipocrisia não desvalida argumentos, que se “nem quem defende determinado argumento é capaz de segui-lo, então deve estar errado ou ser menos adequado”. Contudo isso ainda recai sobre a questão de que não é o argumento o incoerente, mas o argumentador. Não é incomum que alguém defenda algo que vai na contramão dos padrões da sociedade: disso vivem o feminismo, o movimento antirracista, as lutas sociais em geral; também já foram contra os padrões da sociedade a luta burguesa, vide Revolução de 1789, e, inclusive, o cristianismo, que era considerado crime na Roma Antiga. Nesses casos, apesar do indivíduo acreditar em algo e lutar por isso, muitas vezes a pressão social faz com que ele siga por outras vertentes que, frequentemente, são opostas ao que é defendido. Como os indivíduos, ainda que com suas ideias próprias, continuam sendo seres sociais, estão predispostos a falharem e assim o farão com maior frequência quando indo no sentido contrário ao que lhe foi ensinado e ao que vive.
À luz dos argumentos apresentados, entende-se que a hipocrisia é um fenômeno estreitamente ligado à condição humana e, por tal razão, acompanha a humanidade desde seu primórdio e não acabará. Além disso, o comportamento hipócrita, por despertar o sentimento de injustiça, é extremamente repudiado e tem, no geral, uma percepção negativa. A hipocrisia não é parâmetro para desvalidar um argumento ou opinião. Não se deve apontar hipocrisias em debates, uma vez que a hipocrisia diz respeito meramente ao hipócrita e não ao argumento utilizado, tratando-se de uma falácia esse apontamento e, portanto, um ato de desonestidade. Todavia, essa percepção negativa é justificável quanto à validez do caráter de um indivíduo, pois ser hipócrita, ainda que natural (pela incoerência humana) e constante à população, pode indicar falta de empatia e, com ela, deterioração do desenvolvimento social e inteligência emocional. Por tais razões, a hipocrisia possui um caráter ambivalente e não deve ser julgada à exaustão tal como é feito.
1ª nota: cunhei o termo tuquoquismo na confecção do texto. Acreditando ter feito uma palavra nova, pesquisei e percebi que, infelizmente, o charlatão do Olavo já a tinha usado. Não me inspirei nele e tampouco aprovo suas posições e pensamentos.
Arthur Belvel Fernandes,
Engenharia Mecânica, 1° ano
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