O Projeto Inspire da Escola Politécnica da USP

Entenda a origem e a importância do projeto do ventilador pulmonar idealizado por professores da Escola Politécnica e desenvolvido por várias entidades da USP

 
Suporte à vida
Inspire. Expire. É o movimento do diafragma – um músculo em forma de cúpula – que permite a entrada e a saída de ar em seus pulmões; um movimento tão natural quanto o de um piscar de olhos. No entanto, para aqueles que contraem o novo Coronavírus, não importa o quanto este músculo contraia ou dilate: em casos agravados e em que há insuficiência respiratória, o ar que entra para os pulmões acaba não sendo suficiente, já que neste cenário os alvéolos têm dificuldade para absorver o gás oxigênio. A infecção, intensificada pela proliferação do vírus na mucosa pulmonar, propicia insuficiência respiratória, que atinge cerca de 14% dos infectados segundo a OMS, esta porcentagem de infectados terá falta de ar e dificuldade para respirar. Sabe-se que 6% do total de infectados terão insuficiência pulmonar grave e, como consequência, apresentarão risco de morte; e são para casos agravados como esses que um equipamento se faz necessário: o ventilador pulmonar.
Criado para promover suporte respiratório, o ventilador pulmonar, ou respirador mecânico, age de modo a substituir o movimento natural da respiração, sendo, por isso, um importante suporte à vida de pacientes cujo sistema respiratório é gravemente afetado. Devido à crescente demanda por esse equipamento – por conta da ascensão da curva de contágio especialmente no Brasil – muitos centros de tratamento da Covid-19, sejam hospitais públicos, particulares ou centros emergenciais, viram-se sem a quantidade de ventiladores pulmonares que assistisse todos os infectados agravados. É por conta deste cenário que episódios como o do estado do Maranhão, cujo governo foi obrigado a utilizar-se de estratégias extremamente incomuns para importar respiradores chineses, podem se tornar estranhamente frequentes em território nacional.
Tendo esse contexto em mente, e preocupados em sanar o problema de demanda, professores da Escola Politécnica da USP tiveram a iniciativa de desenvolver, e eventualmente produzir em larga escala, ventiladores pulmonares que atendessem os requisitos básicos de suporte à vida. Acompanhe a seguir como se deu o desenvolvimento desse equipamento: da idealização do projeto à tentativa de produção em escala.
Inspire: a idealização e o financiamento do projeto
Após uma conversa entre professores, mais especificamente entre o Prof. Dario Gramorelli e o Prof. Dr. Marcelo Zuffo – originalmente os proponentes da iniciativa juntamente com o Prof. Dr. Raul Gonzalez Lima –, foi levada à Congregação de Professores a ideia de se desenvolver um ventilador pulmonar que pudesse substituir o modelo mais empregado atualmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). O respirador mecânico da Escola Politécnica deveria ser, segundo a proposição, mais compacto, ter seu custo de confecção drasticamente reduzido e ser de fácil manutenção; tais requisitos, se abarcados pelo projeto, facilitariam a aquisição de peças necessárias para a composição de partes do respirador, tornariam sua produção tangível a curto prazo e, com isso, possibilitariam sua distribuição. A ideia foi imediatamente abraçada pela diretoria, que disponibilizou o ambiente universitário aos idealizadores – o que compreende as facilidades e os laboratórios.
Ao Prof. Dr. Raul Gonzalez Lima, engenheiro mecânico e especialista em engenharia biomédica, foi designada a responsabilidade por gerenciar a concepção do respirador emergencial, que, novamente, deveria ser de baixo custo de produção. A equipe responsável pela elaboração e pesquisa é majoritária e atualmente composta por pesquisadores associados à Escola Politécnica e a seus laboratórios, como o Laboratório de Engenharia Ambiental e Biomédica (LAB) e o Laboratório de Engenharia Biomédica (LEB). Desde o começo foi mantida a decisão de que o software do respirador, bem como todo o projeto de demais sistemas, fosse de livre acesso ao público (open source), tendo seu protocolo de manufatura disponível a todos e a todas que tivessem interesse em não só averiguar o projeto e a produção, mas também em dar eventuais sugestões que os melhorassem de alguma forma. No entanto, somente organizações munidas de autorização da Anvisa, e em posse do conhecimento e da técnica de manufatura do aparelho, é que poderão produzi-lo e comercializá-lo.
O desenvolvimento de um equipamento de saúde, empregado em situações em que a vida do paciente está em risco, deve seguir etapas rigorosas e redundantes de modo que seja atestada, por fim, sua eficácia em tratamento. A montagem, portanto, deve fazer uso de recursos e equipamentos confiáveis e de mão-de-obra especializada. Com isso em mente, e apesar de a Escola Politécnica ter contribuído com a disponibilização do ambiente universitário, os pesquisadores sabiam que ainda seria necessário adquirir matérias-primas com as quais seriam feitos os primeiros testes e experimentos cabíveis ao estudo; assim, a primeira fonte de financiamento foi proposta: crowdfunding, ou financiamento coletivo online. Em apenas 36 horas, a “vaquinha” arrecadou R$ 50.000,00; após quatro dias, o montante arrecadado chegava a R$174.000,00. Algumas entidades também contribuíram com doações de materiais e equipamentos, e a rapidez com que o financiamento se deu possibilitou o andamento imediato do projeto.
Atualmente, o ventilador pulmonar está em fase de produção no Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), organização militar localizada na Cidade Universitária – e, portanto, próxima à Escola Politécnica – que se disponibilizou para auxiliar com etapas de fabricação e montagem por conta de sua conhecida parceria com a USP. Vale ressaltar que a mobilização de pessoal capacitado no cenário de pandemia levou em conta todas as precauções recomendadas por órgãos de saúde: dos turnos alternados de trabalho às medidas sanitárias nos ambientes de pesquisa, de desenvolvimento e de produção. A equipe trabalha com equipamentos como face shields, máscaras e luvas; além de ter sido testada para o vírus e de ter sua temperatura corporal aferida com frequência. A alguns pesquisadores e pesquisadoras, inclusive, foi recomendado que trabalhassem de forma remota para que se pudesse evitar contatos desnecessários.
A progressão das pesquisas e das avaliações referentes ao ventilador pulmonar acontece no Centro Interdisciplinar de Tecnologia Interativa (CITI), um núcleo de desenvolvimento de projetos multidisciplinares que envolve toda a comunidade científica da USP. O CITI também está localizado na Cidade Universitária e seu ambiente propiciou a troca de ideias entre pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas, sendo, por isso, o responsável por acelerar ainda mais o andamento da proposição. Apesar de a ideia ter surgido na Escola Politécnica, a equipe responsável pela elaboração e pesquisa do respirador mecânico teve auxílio de grupos de extensão, como o Argo (grupo interdisciplinar de inovação em saúde da USP), e de outras esferas da própria universidade, como das Faculdades de Medicina Veterinária, de Direito e de Medicina. Foi por meio desses auxílios que o projeto conseguiu acesso a testes em animais, assessoria jurídica e embasamento clínico.
A engenharia por trás da confecção de um ventilador mecânico emergencial
Os equipamentos médicos, cuja circulação em mercado nacional é autorizada e fiscalizada por órgãos regulamentadores, como a Anvisa e o Inmetro, possuem classificações de risco de acordo com sua utilização e “invasão”. São elencadas quatro classes de risco, sendo a I a classe de menor risco e a IV, a de máximo risco [3]. Devido à função de os ventiladores pulmonares auxiliarem na manutenção de processos fisiológicos vitais, como na respiração, eles são classificados como sendo de classe II ou III. O que diferencia um ventilador pulmonar de classe II de um de classe III não é somente o impacto na vida do paciente, mas também as limitações funcionais e automatizações que possui. Um respirador de classe III, como o proposto pelo Projeto Inspire, possui condições de assegurar a vida do paciente por meio do controle de frequência do ciclo respiratório e de fração de oxigênio; além de possuir um “modo assistido” e um sistema de controle automático de PEEP (Pressão Expiratória Final Positiva). Apesar de ser de classe III, este equipamento ainda assim é considerado um respirador emergencial, já que não dispõe de todas as funções que um ventilador comercial possui; isto é, o respirador mecânico do Projeto Inspire atende a parte das funções que um equipamento “habitual” atenderia. Por ser um respirador considerado emergencial, portanto, determinou-se que ele somente poderá ser utilizado caso não esteja disponível um respirador comercial para o tratamento.
Segundo o Prof. Dario Gramorelli, engenheiro mecânico e integrante da Associação dos Engenheiros Politécnicos (AEP), o intuito desde o começo era o de construir um equipamento simples e eficaz. “A ideia é fazer um respirador que dure dois meses, e não anos. Se ele funcionar somente durante esse período, ele estará atendendo a sua demanda emergencial”, comentou. Dessa forma, a simplicidade do equipamento é justamente o que o torna uma solução rápida e acessível no contexto de pandemia. Dario ainda ressaltou que o respirador poderia ser mais sofisticado; entretanto, o objetivo inicial era criar um aparelho de baixo custo e de fácil montagem, o que não poderia ser atingido com a proposição de um equipamento mais “aprimorado”.
As funções desempenhadas pelo respirador são coordenadas por um software que foi desenvolvido pela própria equipe do Projeto Inspire; já partes de seu hardware demandaram a aquisição de peças que não poderiam ser confeccionadas pelo time de pesquisadores; por isso, precisaram ser compradas: algumas são encontradas no mercado nacional, mas outras têm de ser importadas – é o caso de filtros e de componentes eletrônicos, como motores de passo.
A simplicidade do equipamento se deve, em parte, à quantidade reduzida de peças necessárias para sua montagem e, em parte, à facilidade de acesso a algumas delas; por exemplo: a parte eletrônica foi feita com a utilização das placas “Pulga” e “Labrador”, equipamentos nacionais desenvolvidos na Escola Politécnica e, portanto, de fácil acesso aos desenvolvedores. Enquanto a placa “Pulga” controla a operação do êmbolo, a placa “Labrador” é responsável pelo controle das demais funções do respirador. Essas placas desempenham o papel do processamento de comandos; são, por isso, os computadores que gerenciam não só a operação do dispositivo como um todo, mas também a interface de comunicação com o operador. Ambas as placas são de baixo custo de aquisição quando comparadas às placas similares disponíveis no mercado.
Quanto à operação do aparelho no quesito de suporte à vida, os responsáveis mantiveram a ideia inicial de adaptar um ressuscitador manual – conhecido como “ambu” – para otimizar o tempo de aprovação por órgãos de fiscalização, como a Anvisa. A partir do princípio de funcionamento desse ressuscitador, os pesquisadores construíram um aparato que não só conseguisse socorrer pacientes em estados agravados da doença, mas também oferecesse recursos existentes em respiradores com sistemas mais complexos.
O ventilador do Projeto Inspire é principalmente composto – além do ressuscitador “ambu” e das placas “Pulga” e “Labrador” –, por um conjunto de fuso e porca, por um motor de passo e um apalpador; todos componentes inseridos em uma estrutura construída a partir do corte de placas de alumínio e de acrílico. Alguns dos equipamentos, como mencionado anteriormente, não são produzidos no Brasil; por isso, demandam importação – é o caso do motor de passo e dos filtros que garantem segurança e conforto ao paciente –; entretanto, outros componentes, como o “ambu”, são facilmente encontrados no mercado nacional.
Expire: o estado atual
Normalmente, avaliações feitas pela Anvisa e pelo Inmetro para atestar a funcionalidade, a segurança e a eficiência de um novo respirador mecânico tomam em média de um a dois anos. No entanto, dada a situação excepcional na qual toda a sociedade brasileira se encontra, o respirador emergencial não passou pela mesma metodologia de verificação pela qual um ventilador comercial “típico” passaria. Ainda assim, foram feitos diversos testes para assegurar a sua capacidade de suporte. Um exemplo é o teste de emissão eletromagnética, em que são avaliados componentes do ventilador. Para que o aparelho seja aprovado, estes não devem interferir no funcionamento de outros equipamentos que estejam em operação simultânea; além disso, é testado se o funcionamento do respirador não sofrerá interferência com a presença de outros equipamentos que podem, eventualmente, emitir ondas eletromagnéticas.
O caráter extraordinário do momento atual, em que uma crise do sistema público de saúde mostra-se iminente, propiciou ao respirador do Projeto Inspire processos de regulamentação excepcionais – uma vez que foram excluídas diversas exigências da Anvisa e verificações do Inmetro. Dessa forma, os respiradores que forem fabricados no CTMSP não poderão ser comercializados: logo após a sua produção, eles serão doados. Além disso, a utilização dos respiradores deverá ser atestada pelas comissões de ética dos hospitais que os receberem como doações; somente assim, poderão ser aplicados em tratamentos.
Como uma das premissas do Projeto Inspire é promover à sociedade um equipamento open source, não há nada que impeça qualquer empresa do ramo da saúde de ter acesso a informações do projeto. Entretanto, somente empresas que fabricam equipamentos de classe III, e que comprovarem capacidade técnica de produção, poderão fabricá-lo. Ainda assim, num futuro próximo, se o equipamento for produzido com fins comerciais, deverá passar por todas as fases de avaliação requeridas por órgãos regulamentadores, nas mesmas fases que outros equipamentos de mesma categoria têm de passar.
Após cerca de trinta dias de desenvolvimento do software e da elaboração do projeto mecânico, os pesquisadores finalizaram os primeiros protótipos. Conforme as verificações de sua funcionalidade, o respirador foi testado e aprovado em animais sob as orientações de professores da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ). Logo após, foi testado em humanos no Hospital das Clínicas da USP, onde obteve as primeiras validações de sua capacidade técnica. Após as fases de teste, e a aprovação da Anvisa, o equipamento começou a ser fabricado. A mão-de-obra é composta, em parte, pela própria equipe do Projeto Inspire e, em parte, por integrantes da Marinha do Brasil. A expectativa é conseguir produzir de 25 a 50 ventiladores por dia, e entregar cerca de 1000 unidades.
A distribuição do equipamento deve ser feita por meio de parcerias do Projeto Inspire com outras instituições nacionais, como as Forças Armadas do Brasil, as secretarias municipais e os ministérios. A ideia é conseguir se aliar a órgãos que consigam disponibilizar sua alta capacidade de atuação em território brasileiro e que tenham informações sobre a situação de hospitais que deverão receber as doações.
Dario Gramorelli, professor entrevistado, explicou que a equipe do Projeto Inspire não possui logística nem acesso a informações para determinar como a destinação dos ventiladores deveria ser feita; assim, optou por firmar parcerias para que a distribuição do equipamento fosse devidamente realizada. Entretanto, a equipe expressou que a decisão por doar e destinar fosse feita por decisão “técnica”; isto é, visando a alcançar locais nos quais há escassez de recursos de combate aos sintomas e em que a taxa de contágio está fazendo mais vítimas – isso para que o equipamento consiga impactar o maior número de vidas.
 
Soluções para a sociedade: o papel da universidade pública
É muito comum que, em períodos de crise de qualquer natureza, a sociedade demande a implementação de soluções adequadas em curtos intervalos de tempo. Uma crise hídrica, por exemplo, demandaria proposições de reeducação de consumo por parte do governo; neste cenário, a crise também necessitaria de soluções de engenharia, que são, em resumo, proposições técnicas cujos principais objetivos são tanto sanar o problema principal, se possível, quanto remediar os efeitos causados pela eventual falta de água. É neste contexto que o papel das universidades públicas se faz presente.
Resolver problemas técnicos, sejam quais forem, exige pesquisa embasada e conhecimento especializado. Em suma: para remediar ou sanar consequências trazidas por catástrofes ambientais, falhas estruturais, variações climáticas ou crises epidemiológicas é necessário ciência, e universidades públicas brasileiras bebem dessa escassa fonte. Universidades públicas são públicas por valorizaram o que diz respeito ao “público”, ou seja, ao povo. Elas existem porque as sociedades como as conhecemos hoje têm problemas que só poderiam ser resolvidos através da elaboração de hipóteses, da proposição de experimentos e da formulação de teorias: que só poderiam ser resolvidos pelo método científico. Não é difícil concluir que a doença causada pelo Sars-CoV-2 é um problema enfrentado por todas as sociedades existentes no planeta, e não são todas, infelizmente, que possuem tais instituições. Sejamos gratos e gratas por aqueles e aquelas que lutaram pelo que diz respeito ao que deve ser público: ciência.
 
Agradecimentos
A equipe do jornal O Politécnico deixa aqui registrado o seu mais sincero agradecimento a todos os integrantes do Projeto Inspire, sejam eles da Escola Politécnica, das Faculdades de Direito, de Medicina e de Medicina Veterinária da USP, sejam da Marinha do Brasil ou de demais entidades que colaboraram com o andamento do projeto de alguma forma. Agradecimentos especiais ao Prof. Dario Gramorelli, que nos cedeu seu tempo na forma de uma entrevista usada para a elaboração do presente texto. Para companhar o Projeto Inspire, acesse: https://www.poli.usp.br/inspire.
 
Sergio de Campos Junior
Engenharia Naval, 4° ano
Roberto Araújo
Engenharia Civil, 3° ano

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