Ele sentou-se novamente no banco.
Já havia se levantado duas vezes, decidido que era tempo que ir, mas duas vezes tornara a se abaixar para descansar o corpo na madeira velha. Sua pintura já estava desgastada, e a ponta do seu dedo, ainda coberta pelo curativa do outro dia, brincava com uma pequena lasca de tinta seca.
Deveria ir embora. Não podia mais ficar ali.
Deveria colocar-se sobre o seu corpo e fazer os dois pés idiotas funcionarem, um após o outro. Contudo não. Ainda estava ali, a olhar o céu azul, agora com menções do roxo do pôr do Sol, a pensar que droga faria da vida.
Não sabia como havia ido parar naquela situação. Dois meses atrás, tudo estava caminhando bem. Tinha uma rotina estável e confortável, um apartamento pequeno numa parte ajeitada da cidade e um emprego perfeitamente ok. Acordava todos os dias, tomava o café forte demais, punha o capuz e saia para enfrentar mais um dia. As vezes chovia, mas nunca se lembrara de comprar um guarda-chuva depois que o antigo – presente da mãe – quebrara, e acabava enfrentando a garoa face a face.
Era uma sensação boa, a pele do rosto quente contra as gotas, o resto do corpo protegido o suficiente para não sentir o vento gélido. Assim, chegava em casa, se enfiava debaixo do chuveiro tórrido de menos – o que dependia do seu comportamento – e pedia alguma coisa pelo delivery. Ou fazia aquele miojo esquecido do armário, na torcida que o molho de tomate não estivesse estragado.
Ligava o celular no modo horizontal e, colher na outra mão, assistia qualquer que fosse a série do momento.
E essa vida não parecia ruim. Bom, até alguns dias atrás.
Um dia, ele estava voltando do emprego quando uma garoa de verão começara. Fora repentino, a primeira gota caindo imediatamente na sua testa, até que se tornara forte o suficiente para o resto das pessoas da rua procurasse abrigo para os próximos minutos. Como sempre, ele não se importou, e continuou seu caminho, decidido a chegar em casa mais cedo e descobrir se algum coisa boa – ainda – passasse na televisão e ele não tivesse descoberto.
Contudo, antes que percebesse, as gotas começaram a se misturar a algo mais morno e cálido, e ele percebeu que eram suas lágrimas. Passou o dedo pelo rosto, como se não acreditasse no que estivesse acontecendo, e percebeu a torrente, quase tão forte quando a chuva que o cercava.
Aquilo não tinha acontecido antes. Ele estava bem. Ele acreditava estar bem, caramba.
A vida não era perfeição cem por cento das vezes, mas, poxa, era boa o suficiente. Satisfatória o suficiente. Não era aquilo que ele sonhara desde criança, quando, no colo da mãe, imaginava todas as glórias e alegrias que o futuro poderia esconder. Uma vida fora daquele buraco onde crescera, um lugar que pudesse realmente chamar de lar e onde poderia morar com a mãe, dando todo o conforto que ela merecia por todos os anos que lutara e não saíra do lugar.
Contudo, a dois anos, ela morrera, e todos aqueles seus sonhos perderam seu cerne. Ele terminou a faculdade, pois era o certo a fazer depois de tudo o que haviam passado, e arrumou o emprego na firma em algumas semanas. E fora isso.
Ele pensara estar estabilizado, mas nunca pensara estar simplesmente parado.
Mas aquelas lágrimas o haviam aberto toda aquela tonelada de sentimentos que ele deixava trancado.
Aquele peso bem no meio do peito, onde o coração deveria estar. Aquela coisa pesada que já estava dormente, depois de tanto tempo, mas as vezes o sufocava, e o obrigava a procurar refúgio fora da realidade. Aquela sensação, a cada vez que via alguém evoluindo, alguém simplesmente se movimentando, e o fazia se lembrar do seu estado.
Da sombra que o seguia, da cicatriz mal fechada em torno do coração e de toda a merda que ele fingia não perceber. Doía, e era melhor um machucado dormente do que um que, com a dor, o lembrasse do que deveria ser feito. Do quanto ainda havia de mundo por aí.
Ele levantou-se novamente, parte de si pensando que era naquele tipo momento que se tomava uma decisão. Que se dizia a parte de agora, é pra valer e tomar um rumo para a vida.
Contudo, quando ele finalmente pôs um pé na frente do outro, não foi rumo a um lugar melhor. Foi na direção a aquele mesmo apartamento minúsculo no lugar ajeitadinho da cidade.
Pé após pé, ele soube exatamente aonde iria parar.
Iria para onde sempre esteve, e de onde nunca iria sair.
Não enquanto sua vida dependesse dele, e apenas dele.
Anônimo
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