Em memória de Shigueru Nagao Jr.
Meu nome é Eduardo Lorenzetti Pellini. Este é um relato sob o meu ponto de vista, no papel de um observador, que teve o privilégio de acompanhar a trajetória profissional e pessoal de um brasileiro, um engenheiro, um professor, um amigo, em quem depositava altas esperanças e votos de prosperidade e vida longa.
No dia 18/05/2021, perdi Shigueru Nagao Junior, meu orientado de doutorado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, e também um querido, amado e competente pai, filho e esposo. Faleceu por complicações da COVID-19.
Em meio a mais de 430 mil vidas perdidas no país, Shigueru, assim como todas estas demais almas, jamais foi ou será um simples número ou uma estatística, de alguma tragédia ou acidente inevitável, mas sim uma vítima da falta de seriedade e de governança em nosso país.
Conheci Shigueru a pouco mais de 9 anos. Sua entrada na EPUSP como estudante de pós-graduação foi quase simultânea à minha admissão como professor desta Escola. Mais velho do que eu por alguns anos, nos conhecemos de forma casual, quando ele me pediu referências para estudar tópicos de Sistemas de Potência, pois pretendia fazer sua pós-graduação nesta área em nossa Escola. Ele tinha uma excelente formação em microeletrônica e sistemas embarcados, mas estava encantado pelas oportunidades profissionais do setor de energia elétrica. E queria aprender mais, e melhor, sobre a área de pesquisas e desenvolvimento deste setor.
Na ocasião, descobri que ele foi Politécnico, entre 1989 e 94. Entretanto, ele teve de interromper sua graduação na EPUSP, em seu último ano, para auxiliar sua família, de Batatais, interior do Estado de São Paulo, quando seu pai foi acometido por um infarto. O infarto não foi fatal, mas Shigueru Jr., como filho único, voltou para sua cidade para trabalhar e ajudar sua família. Por suas competências, trabalhou em diversas áreas como técnico, no Brasil e no exterior, em empresas da área de automação industrial e telefonia celular, durante o boom das telecomunicações. Tornou-se pai e, apenas em 2009 teve a oportunidade de terminar sua graduação em engenharia, em outra Universidade. Sempre teve ambições por lecionar e dar aulas, e isso o fez voltar para sua Escola, para desenvolver pesquisas, desenvolver e conquistar um mestrado. O privilégio de sua orientação na pós-graduação ficou comigo, mas compartilhei esta oportunidade com um grande colega professor, Josemir C. Santos, de meu no Departamento, que também tinha absoluta fé nas competências de Shigueru.
Pela pouca diferença de idade, nos reconhecemos imediatamente pelos gostos comuns da cultura pop e “nerd” (de Star Wars até os Transformers), passando também pelo (incompreensível) vício por programação de computadores e pelo projeto de sistemas eletrônicos embarcados. Era um enorme prazer desfrutar horas de conversas com ele sobre eletrônica digital, analógica, programação e sobre nossos idolatrados personagens na ficção científica.
Com maturidade e experiências de uma vida profissional intensa, não foi difícil que seus estudos e pesquisas decolassem. Em alguns meses já estava trabalhando na área de sensores a fibra óptica, com proficiência e propriedade sobre os assuntos, conseguindo participar de forma determinante nos projetos de desenvolvimento e inovação do Departamento de Energia e Automação, e em consultorias para empresas da iniciativa privada na área aeroespacial. Criava hardware, software, algoritmos, experimentos e produtos. Seu mestrado foi um primor de organização, com uma dissertação elaborada nos últimos detalhes, com um capricho que identificava claramente tudo aquilo que Shigueru fazia. Divulgou seu trabalho no exterior. Por isso, ganhou prêmio de melhor trabalho e apresentação em congresso internacional. Demonstrava, orgulhosamente, ser Politécnico, Brasileiro e patriota. Recentemente teve duas patentes depositadas e preparava seu doutorado inovador para a área de fotônica, que teria impacto relevante para o setor de energia e de sistemas inerciais brasileiro.
Na academia, já ao final de seu mestrado, leciona em Universidades, e multiplicava suas capacidades e habilidades, projetando seu modo de trabalho, de estudo e sua índole, para inúmeros pupilos e aprendizes. Não foi surpresa quando notei que sua rede de amizades (dentro e fora da Escola) refletia justamente seu jeito solidário e atencioso com o próximo. Ajudava alunos de graduação, pós-graduação, professores e engenheiros seniores de empresas. Não havia tempo feio, não havia tarefa impossível, ele demonstrava coragem, ousadia e responsabilidade, em auxiliar quem precisasse, para ir adiante.
Na área de ensino, orientava projetos multidisciplinares, envolvendo desde automação industrial, alimentícia, até o primeiro projeto de um CubeSat de uma faculdade paulista num concurso brasileiro. Gostava de inovar e integrar tecnologia em suas aulas e cursos, e fazia tudo isso com uma organização invejável e inspiradora. Muito bondoso e simpático, ele também sabia ser sincero e crítico quando se deparava com o descaso, com a preguiça ou com o desprezo à ciência e às boas práticas da engenharia. Nesse papel, ele me lembrava muito o personagem do Sr. Miyagi, com lições surpreendentes, mas com austeridade na cobrança de resultados. Talvez a melhor imagem que tenho dele nos personagens que gostamos era do Mestre Yoda. Isto tanto é verdade, que a imagem do Yoda era seu avatar nos aplicativos de conversas. Neste contexto, preciso admitir que, no papel orientado/orientador, eu não sabia quem aprendia mais com quem.
Sua heroica determinação em ser engenheiro e professor era ainda amplificada pelas suas qualidades pessoais. Era um excelente amigo, infinitamente paciente, e sabia ouvir e escutar. Ele parecia inocente em suas palavras, mas isso fazia parte de sua mais elegante educação e respeito. Sua ampla coleção de amigos e colegas (Raul, Gleison, Juliano, …) era prova dessas habilidades. Ele sabia opinar e dar conselhos com experiência e sabedoria. Sabia discutir, argumentar e também reconhecer seus próprios erros, com um apurado senso de justiça. Estas são as qualidades dos líderes que precisamos. Todas estavam presentes em Shigueru. E ele executava esse papel com nobreza e caráter. Neste contexto, Shigueru me lembrava muito o personagem de Optimus Prime, outro de nossos ícones da ficção. Shigueru gostava de se envolver, de se comunicar, tanto que realizou recentemente o papel de representação discente dos alunos de pós-graduação, de toda a Escola, junto aos nossos órgãos colegiados e junto às representações do Grêmio e do Centrinho, que saudosamente o aplaudem.
Surpreendentemente, todas estas qualidades e tarefas mencionadas ainda eram feitas junto da criação e educação de seu filho, Alan Gabriel, que Shigueru fazia com prazer, carinho e atenção. Quantas vezes presenciei ele falando com seu “Fi”, por telefone, computador, qualquer que fosse a distância ou a hora do dia. E como outras realizações de Shigueru, não é preciso ver muito para reconhecer que seu filho é sua maior criação, uma cópia ainda mais refinada de seus valores e de sua coragem, num rapaz inteligente, competente e com um enorme potencial. Entretanto, tudo isso não foi feito sem ajuda. Shigueru tinha ao seu lado mãe, pai, avó e, mais recentemente, uma nova companheira, Kalliny, que o auxiliava e motivava a seguir em frente, sem cansar, sem desistir.
Shigueru tinha o coração maior e mais forte que jamais vi. Com coragem e fé, passou por dores e desgastes dos mais variados. Perdeu seu pai em Outubro de 2020 por complicações de uma cirurgia, e sua avó em Abril de 2021. Ele se cuidava e cuidava dos outros, mas, em maio de 2021, foi acometido pelo COVID. Na medida do possível, estava evoluindo bem, com sua esposa e filho em São Paulo, dando aulas remotas, desenvolvendo seu trabalho de doutorado, cuidando de seus queridos, mesmo à distância. Entretanto, numa fatídica terça, nosso herói cai por um mal súbito, uma complicação dessa terrível doença.
Hoje eu, Eduardo Lorenzetti Pellini, como orientador ou orientado de Shigueru Nagao Junior, presto minha homenagem à sua história e à sua existência. Eu testemunhei sua coragem, seus feitos, criações, e virtudes. Declaro que todas estas qualidades fazem de Shigueru uma pessoa única, insubstituível, pela qual guardo imensa saudade. Tenho certeza que ele agora está junto da Força, do Divino, e que continua a guardar e iluminar o caminho das pessoas que lhes são queridas. E a elas, deixo minhas condolências e todo meu apoio, como para seu filho.
Alan, veja a trajetória de seu pai, e acredite naquilo que ele via em você. Confie e transforme seus sonhos em realidade.
E Shigueru, olhai por nós. Até todos serem um!
Eduardo Lorenzetti Pellini,
Professor do PEA.
Nota do editor em 30/06/2021, data de lançamento da 2ª edição: “Morte parte natural da vida é. Alegre-se por aqueles ao seu redor que na Força se transformam”. Shigueru fica eternizado na memória com o momento de felicidade que teve comigo quando soube que iria apresentar na EXPO PG.
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