Sobre quantidades

Quantas letras tem a palavra “O”? E “Jornal”? E “Politécnico”? A dificuldade de saber esse valor aumenta conforme o número de letras, certo? Mas perceba que você não contou quantas letras “O” tinha e já sabia que era só uma. Para “Jornal”, bem provavelmente também não houve contagem pra saber que eram seis, mas não foi tão imediato quanto na anterior. E, por fim, em “Politécnico”, aposto que você foi contar pra descobrir que eram onze. Aliás, contou como? Uma por uma sem se perder ou foi de 3 em 3, “pol/ité/cni/co”? Há uma diferença não linear entre o tempo que você toma para descobrir a quantidade de letras numa palavra quando ela tem menos de 4 letras e quando tem entre 4 e 6, sendo que essa discrepância aumenta ainda mais para quantidades maiores. Porém esse texto não tem nada a ver com letras.

O fenômeno que foi ilustrado acima é o de “subitizing”, não comumente traduzido, mas que seria algo como “subitização”, que remonta ao termo “súbito”, ou seja, referente àquilo que é repentino. Trata-se da percepção praticamente imediata, correta e confiante de quantidades menores ou iguais a 3 ou 4. Ou seja, ao ver, por exemplo, dois pontos, em frações de segundo você poderia afirmar que eram dois pontos (e de fato, eram) e estaria confiante dessa afirmação. Entre 4 e 6, ocorre outro tipo de subitização, em que agrupamos os objetos em grupos menores e somamos, inconscientemente. Acima disso, nós frequentemente separamos as quantias em grupos com até três itens para realizar a contagem de maneira mais simples — não é à toa que a gente usa pontinhos pra separar os números grandes.

Nós, humanos, somos o pináculo da evolução quando o assunto é fazer cálculos. Os primeiros parágrafos deste texto serviram para exemplificar como somos bons em lidar com dimensões pequenas, percebemo-nas de imediato. No entanto, para valores maiores, não é bem assim que funciona. Descobri isso no ensino médio, na aula de um professor desses que não se restringe ao conteúdo da matéria e permite ver a beleza por trás daquilo que estamos calculando. Enquanto ele obtinha algumas distâncias astronômicas (raio da Terra, distância Terra-Lua, distância Terra-Sol, por aí vai), terminou um dos cálculos de Eratóstenes e constatou, para meu espanto, que aqueles números não lhe faziam sentido. Sabia trabalhar com eles, mas não os compreendia perfeitamente. Isso porque, para a seleção natural, saber dimensões pequenas já bastava. “De cabeça” e em segundos, um humano é capaz de olhar para um rio, determinar a distância que ele precisaria correr, a velocidade que deveria alcançar, a magnitude e direção do impulso aplicado por seus pés contra o solo e executar perfeitamente esse movimento. Porém um humano nunca poderia percorrer nada parecido com a distância da Terra ao Sol. Foge do nosso entendimento.

Apesar disso, como alunos de uma escola de engenharia, a gente luta contra essa limitação o tempo todo. Aprendemos mais e mais como calcular, obter e lidar com grandezas. Por detrás da tela desse computador, trabalhei com coeficientes em gigapascal, que é 1.000.000.000 pascal, num armazenamento de 1 terabyte, ou seja, 1.000.000.000.000 bytes. Para mim, as duas escalas são “bastante” e essa diferença de 3 zeros a mais eu não sei o que quer dizer. Talvez por causa dessa normalização de números gigantes, a gente esteja se perdendo um pouco. Parece que a gente entende muito sobre potências de dez e valores astronômicos e esquecemos que, por vezes, há um sentido não tão óbvio por trás desses valores.

Quando vi que o Brasil atingiu a marca de 500.000 mortos por COVID-19, inebriado pelas noções matemáticas que nos rodeiam, estabeleci relações com outros valores conhecidos. Foi assim que percebi que eu não faço a menor ideia do que 500 mil representa, eu só sei que é muito mais do que minha capacidade humana permite compreender. De acordo com as hipóteses relacionais de Dunbar, eu só devo me relacionar com cerca de 150, conhecer 500 e saber nomear 1.500 pessoas. Pelos zeros, a gente vê a diferença, mas eu não sei de fato o que isso quer dizer. Quinhentos mil são tantos que a mente humana pifa; mas a mente do engenheiro, esta, arrogante, tenta quantificar isso para compreender melhor. Do início da pandemia pra cá, foram 480 dias, ou seja, a média é de mais de 1.000 mortos por dia no Brasil: em uma semana, temos a soma de alunos, funcionários e professores da Poli. O total ultrapassa a subprefeitura do Butantã. E o pior, sem dúvidas, é que isso tudo não se trata de números: são pessoas, famílias e vidas desgraçadas — e os sentimentos são imensuráveis. São neles que a gente encontra os amigos e familiares perdidos (e não no “quinhentos mil”).

Volto pra contagem. Quão imensa é a diferença entre 6.661 e 1.324.523 motos? Os dois valores possuem algo em comum: são maiores que 4, então nossa mente não conta de maneira imediata. Sobram dois caminhos, contar no dedo ou contar esperto — honremos a graduação e vamos contar esperto. Por um código de Python que um aluno de MAC2166 pode entender, é fácil chegar em 6.661 motos na “motociata” da semana passada. Que algumas pessoas tenham acreditado na mentira de 1,3 milhão é, claro, outra evidência de que a gente não lida bem com grandes quantidades. Ou ainda, um sinal ainda mais claro de que aqueles 30% (outro valor que é muito alto) são muito piores em estimar quantidades. Ou um indício de que só mentem.

Por fim, tem valores que podemos contar, que são palpáveis e, ainda assim, podem ser excessivos. 560 dias até 2023 é palpável e coerente com o que sei de calendário. 560 dias até o fim desse governo é além da conta. Por um mês a gente passa, a gente aguenta. Um mês a menos com vacinas foi tempo demais. 81 é ok, eu aprendi na tabuada, mas 81 e-mails sem resposta foi proposital demais. O que sinto não é “só” sobre os 500.000, mas também sobre os que perdi: não são números a mais, são dores.

Arthur Belvel Fernandes,
Engenharia Mecânica, 2º ano.

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