E cá estamos nós, ávidos, mais uma vez reunidos, preparados para passarmos outro ano entregues ao debate definitivo — embora cíclico —, a eterna busca por concluir quem é a pessoa certa para, sozinha, solucionar todos os problemas do Brasil!
A ideia, aqui, é encontrar alguém (em geral — você sabe —, um homem branco, hétero, cristão, já com uma certa idade, mascarada por seu cabelo pintado naquele tom específico de acaju) que incorpore o Estado, que se torne o Estado. Entregamo-lhe todo o controle, porque ele saberá o que fazer. E, não se engane, em um regime presidencialista como o brasileiro (e os latinos, por via de regra), é inevitável: salvo raras e conturbadas exceções, quando escolhemos nosso salvador da pátria da vez, o poder é dele por (pelo menos) quatro anos.
De modo geral, baseamos nossa escolha em patrimonialismo e populismo. O discurso é sempre o mesmo: há um determinado grupo no país que impede a tão sonhada ordem e progresso. Então, o líder, que se autointitula parte desse pobre povo, é predestinado para enfrentar aquele grupo. Há variações, claro. Temos populistas autoritários, ditatoriais e, até mesmo (pasmem!), democratas.
Assim, a população dá a esse messias — aquele com valores inestimáveis —, o poder supremo de resolver suas aflições. Danem-se as instituições. Essa, inclusive, é uma das razões pelas quais muitos defendem o parlamentarismo (ou, ao menos, uma espécie de semipresidencialismo) no Brasil — sugestão que tende a ser rejeitada de imediato. A justificativa é simples: “Como assim um monte de políticos compartilhando o governo? Não! Eu quero escolher quem vai mandar! Eu quero escolher o cara!!!”. Durante períodos eleitorais, então, a parte final desse raciocínio funciona que é uma beleza! Como uma droga, nada se compara ao êxtase de quando escolhemos a pessoa certa e despejamos nela nossa fé mais desesperada.
Entorpecidos, muitas vezes não notamos o papel de vassalos ao qual somos submetidos e aceitamos com incompreensível naturalidade o fato de que o nosso Estado está cada vez menos impessoal — e, consequentemente, cada vez mais encarnado nas figuras míticas que elegemos. Afinal, o líder — e só o líder — possui as habilidades sobre-humanas necessárias para nos colocar de volta no eixo.
Luís XIV, autor do célebre “O Estado sou eu”, faleceu há mais de três séculos. Não temos mais monarcas nem absolutistas no Brasil. Apesar disso, não deixamos de conceder aos nossos governantes uma espécie de superpoder. Na prática, não elegemos uma pessoa. Elegemos um Super-Homem.
Convenhamos, é o caminho mais fácil, o pensamento mais cômodo e intuitivo. Nossas histórias nos ensinam a sermos assim. Chega até a ser um clichê do cinema o dualismo do mocinho contra o bandido, do bem contra o mal — e a personificação desses dois. E, embora possa não aparecer, a presença desse recurso narrativo se estende a exemplos menos óbvios do que as tradicionais histórias de super-heróis.
Um deles é Bohemian Rhapsody, narrativa autoconglaturatória do Queen, em que Freddie Mercury é absolvido de seus excessos — problemas de ego, brigas com a banda e até o uso de drogas —, cuja responsabilidade é totalmente atribuída à influência negativa de seu manager malvadão.
Já em Os Sete de Chicago, esse mesmo artifício é utilizado, agora com mais eficiência, no juiz Julius Hoffman, um único personagem que representa todo o sistema que o filme acusa. Neste caso, a própria atuação de Frank Langella, em parceria com o roteiro do mestre Aaron Sorkin, impede que o juiz se torne caricato.
Fato é que, bem ou mal executada, essa estratégia é comum às histórias que nos são contadas desde a infância. Afinal, é consideravelmente mais fácil assimilar a existência de um alvo em específico do que mirar em vários ao mesmo tempo.
Mesmo em Matrix, obra aclamada por romper padrões do sistema, ainda há a dualística disputa entre Neo (Keanu Reeves) e Agente Smith (Hugo Weaving), sendo que a própria escolha do protagonista se dá entre duas opções: uma pílula obviamente certa e outra errada (caso contrário, o filme duraria meia hora). Aliás, Matrix é fundamentado no livro Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard, que, inclusive, recusou o convite para colaborar na produção da franquia por considerar que “Matrix é certamente o tipo de filme sobre a Matrix que a Matrix seria capaz de produzir”. A série chega a abordar esse conceito, tratando sobre como a falsa perspectiva de revolução faz parte da Matrix, na qual os personagens que acreditam se libertar do simulacro estão apenas entrando em outra simulação.
Outro exemplo clássico da jornada do herói é Star Wars. Em Os Últimos Jedi, a saga tentou quebrar o padrão de Jedi contra Sith, propondo o lado do meio, a possibilidade de todos poderem manipular a Força e de o herói também possuir o seu lado sombrio. E o que aconteceu? Os fãs odiaram, e a Disney fez o que se espera de todo conto de fadas: demitiu todos os responsáveis pelo projeto e voltou atrás (naquele filme medonho sobre o qual a gente não fala para que o autor deste texto não chore copiosamente no banho). Ou seja, optou-se, novamente, pela concepção mais cômoda e rudimentar.
Para além das telonas, também é confortável categorizar heróis e vilões. Elegemos ídolos no esporte, nos reality shows, na política… e condenamos pessoas com a mesma frequência. Basta alguns poucos minutos na internet para reconhecer os padrões de discurso, principalmente, em temas tratados de forma apaixonada.
Na política, por exemplo, temos arquétipos pré-definidos para todos os gostos e tamanhos. Há o candidato ladrão, chefe da maior facção criminosa do país! Ou, então, aquele do povo, que, assim que eleito, automaticamente o tirará da miséria! Existe, ainda, o característico político anti establishment. Temos, também, o herói de capa, incorruptível, dono do mais apurado senso moral… bem como o tirânico juiz, júri e carrasco (ou deveria dizer juiz, procurador e ministro?). Até mesmo a redentora “terceira via” possui toda uma mitologia fantasiosa por trás. Isso para não mencionar o obviamente triste exemplo do “mito”… Essas narrativas — aliás, vale um texto dedicado apenas a como essa palavra vem tendo seu sentido totalmente deturpado no cenário político contemporâneo — tornam a incansável e irracional defesa dos nossos ídolos muito mais simples.
Retomando as referências cinematográficas, estamos em temporada de premiações, e, como em todo ano desde 2016, o famigerado meme “Não sou capaz de opinar” foi ressuscitado nas redes sociais. Caso você seja um(a) sortudo(a) que (ainda) não teve sua timeline invadida por ele ou, então, que não faz a menor ideia do que seja isso, cabe, aqui, um breve resumo: basicamente, a atriz Glória Pires foi convidada para comentar o Oscar, mas não acompanhava a cerimônia há muitos anos e não tinha assistido a todas as obras; assim, seus comentários durante a transmissão alternaram entre “Não sou capaz de opinar” e “Não vi este filme”.
Deixando de lado a óbvia bizarrice por trás desse acontecimento, é curioso pensar que uma pessoa que deveria estar qualificada para tratar sobre um assunto assumiu não ser capaz de opinar, enquanto, diariamente, disparamos nossas teses, como profissionais, em tópicos sobre os quais não temos domínio algum, sem fazermos ideia do que estamos dizendo.
É claro que não é de hoje que sentimos essa necessidade incessante de sabermos de tudo — quantas vezes você elogiou uma banda ou teceu comentários sofisticadíssimos sobre um livro de que você sequer sabia da existência apenas para socializar? Entretanto é crescente essa pressão para que o nosso ponto de vista seja explicitado aos sete ventos das redes sociais.
Todo dia, celebridades dão declarações polêmicas, políticos tomam atitudes controversas e bombas explodem (às vezes, infelizmente, de maneira literal). A demanda é altíssima, sendo comum lermos títulos de notícias (e não seu conteúdo) e nos informarmos por meio de influencers (ao invés de especialistas). Assim, a síntese já está dada e ninguém se interessa realmente pela antítese. Não há tempo (nem espaço) para refletirmos, sendo praticamente impossível saber de maneira aprofundada sobre os assuntos e debater — de fato — a respeito.
Dessa forma, raramente deixamos a superfície. Nas palavras do filósofo francês Pierre Levy, “Quanto mais se fala de uma coisa, menos se sabe sobre ela, já que uma crosta é criada e compartilhada até endurecer — o que dificulta mergulhos mais profundos”. E, sem dúvidas, a incontrolável ansiedade de consumir tudo a todo momento para não sermos deixados para trás não alivia esse processo. É preciso consumir e opinar, consumir e opinar — e rápido. Há duas opções: posicionar-se imediata e fervorosamente ou, então, se tornar “isentão” e omisso. E ponto. Não há discussão: ame ou odeie cada uma das coisas (inclusive este texto!), mas ao menos tenha a decência de emitir sua tão necessária opinião! Todo esse ímpeto faz com que a guerra de paixões tome o lugar do debate de ideias, instituindo-se o tão badalado “nós contra eles”.
Extrapolando para o cenário nacional, em que, obviamente, todos deveríamos ser “nós”, acabamos nos tornando potenciais “eles”. Constantemente na defensiva, passamos por um eterno contorcionismo moral e ético para sustentarmos o nosso lado — e, claro, para apontarmos o dedo na cara do amiguinho que, na nossa cabeça, está do outro. Não há espaço para discórdia, e o que outrora representou o desenvolvimento de um olhar crítico, hoje é tido como sinal de fraqueza. Não basta saber sobre tudo, opinar sobre tudo e fazer tudo isso o mais rápido possível, ainda é indispensável dobrar a aposta e manter impassível seu ponto de vista.
Nesse processo, cada uma das convicções que agarramos sem questionar nos limita um pouco mais. Apressados, ignoramos tudo o que não nos agrada de imediato, apenas para reforçar a mediocridade do que, com unhas e dentes, nos comprometemos a defender. Em meio a esse frenesi, não compreendemos que, às vezes, apenas não somos capazes de opinar (e que isso não é demérito algum).
Entre scrolls infinitos no Facebook, histórias filtradas no Instagram, vídeos hiperestimulantes no TikTok e cancelamentos exasperados no Twitter, praticamos o esporte favorito das redes, a ostentação da nossa pseudoconsciência social, e nos deixamos levar pela heteronomia. Jamais permitimos que estímulos externos influenciem a “nossa” personalidade irretocável, sendo crucial protegê-la a todo custo.
Desde já, estamos preparados para um longo ano, repleto de discussões intermináveis durante o almoço de domingo, “textões” cordiais em grupos e trocas de blocks e xingamentos com perfis aleatórios. Endeusando o nosso lado e demonizando o do próximo, aplicamos a maquiavélica retórica utilizada na escolha do nosso Super-Homem pessoal para definirmos, também, nossos super-vilões.
Aliás, o termo “super-homem” (do alemão, Übermensch) foi criado pelo filósofo Friedrich Nietzsche, que, em Assim Falou Zaratustra, designa-o como um um indivíduo acima da mediocridade, cuja existência se deveria mais ao esforço do que à seleção natural. Assim, a característica dominante do super-homem seria o amor à luta e ao perigo, deixando a felicidade para os seres humanos ordinários, pois, ao super-homem, caberia o dever de se elevar além dos limites e valores estabelecidos pela normalidade, representando o modelo ideal para elevar a humanidade.
Portanto, se, mesmo depois de toda essa conversa, você ainda recusar o prazer incomparável de destruir uma crença limitante que você criou para si próprio, ainda se obrigar a se posicionar de maneira inadvertida sobre absolutamente todos os assuntos e ainda optar por eleger um super-homem para guiar seu discurso e sua filosofia de vida pelos próximos anos, ao menos tenha a dignidade de basear sua escolha na definição de Nietzsche, e não na da DC Comics.
Mateus Pina,
Engenharia Mecatrônica, 2º ano.
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