Por Murilo Ferreira Noronha (Engenharia de Produção, 2° ano)
Chegamos ao fim do mês da Consciência Negra! O mês de 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, herói quilombola e símbolo de resistência. Resistência que se faz necessária em um mundo composto por sociedades racistas em suas raízes e mantidas por um sistema político e econômico que se sustenta na desigualdade e na marginalização.
Em homenagem ao mês, e também tardiamente à quinta edição da Semana da Consciência Negra, evento organizado pelo coletivo Poli Negra, o tradicional quadro d’O Politécnico não poderia ter um tema diferente hoje: a análise de um filme cultuado e atemporal de temática racial. Diversas obras protagonizadas e dirigidas por pessoas pretas fariam seu papel aqui, e a que vos trago tem um lugar especial na minha apreciação e na história do cinema. Do the Right Thing, longa lançado em 1989 e indicado ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao NAACP Image Awards, conta com a produção, roteiro, direção e protagonismo do mestre Spike Lee, além da participação no elenco de outras lendas da atuação, desde Samuel L. Jackson até Giancarlo Esposito. Fun fact: precisei assistir duas vezes para um amigo me fazer perceber que o gigante Gus de Breaking Bad fazia parte do elenco.
Em suas quase duas horas de duração, o filme transita muito bem entre uma comédia bem dosada e um drama sério, além de carregar sempre muita representatividade enquanto apresenta a dinâmica de um bairro composto em sua maioria por grupos marginalizados: negros, latinos, asiáticos e — ironicamente, mas nos Estados Unidos — italianos. É o dia mais quente do ano, talvez não só pela temperatura anunciada pelo Mr. Señor Love Daddy, que chega aos 38ºC.
O dia se inicia tranquilo, com o protagonista Mookie atrapalhando o sono de sua irmã Jade (Joie Lee (sim, irmã de Spike Lee)) e se arrumando para o trabalho de entregador na Pizzaria de Sal (Danny Aiello), que trabalha com seus dois filhos, um tranquilo com sua vida simples e outro revoltado que desconta sua frustração através injúrias raciais. O dia, apesar de quente, se inicia ordinário: fofocas, pequenos conflitos, tensão romântica entre Mother Sister (Ruby Dee) e Da Mayor (Ossie Davis), o Smiley (Roger Guenveur Smith) recebendo pouca atenção e a caixa de som de Radio Raheem (Bill Nunn) roubando a atenção do bairro inteiro. A semente do caos é plantada quando Buggin’ Out (Giancarlo Esposito) nota a parede da pizzaria lotada de retratos de ítalo-americanos brancos. O jovem protesta sob o argumento de que a comunidade negra é quem dá lucro ao estabelecimento. Logo, ela merece a maior homenagem. Há quem possa argumentar que é direito do pizzaiolo ilustrar seu restaurante da forma que ele bem entender, mas para mim esse protesto no filme simboliza algo muito maior: uma sociedade construída por uma parcela do povo, que lucra com seu trabalho, seu dinheiro e sua propaganda gratuita, não tem o dever de contribuir com essa comunidade? Se não prestigiar, no mínimo reconhecer seu papel? Um país construído pelo sangue e pelo suor que escorre da pele negra não deve pagar por seu trabalho? Sal provavelmente reconhece isso, bem como quem comanda o Estado, mas não permite que essa urgência seja maior que seus preconceitos, afinal, uma estrutura racista sempre coloca como símbolo seu personagem privilegiado (geralmente homens brancos), enquanto o trabalhador preto, mesmo base do sistema, é posto nas sombras.
Diversos outros símbolos aparecem no longa. Como é o caso de “Fight The Power”, música do grupo Public Enemy que acompanha Radio Raheem e seu rádio de 20 pilhas em um volume ensurdecedor. O volume é uma representação das vozes pretas que em grito violento clamam por seus direitos e constantemente recebem como resposta a tentativa de censura, seja das autoridades ou do próprio povo criado pelo sistema. Apesar de todas as tentativas, continuamos aumentando a nossa voz, recarregando nossas energias esgotadíssimas e lutando, seja com amor, seja com ódio.
O evento que desencadeia o final do longa, se contado sem avisar que se trata de um filme, infelizmente será ouvido como uma notícia da atualidade. Sua construção é feita a partir de pequenos atos, que poderiam ser resolvidos por uma sociedade mais justa, que não é construída por quem está em posição de privilégio. Então deve ser erguida pela nossa força, conjunta. Diz um pronome africano: se quiser ir rápido, vá sozinho; se quiser ir longe, vá em grupo. Assim deve ser a nossa luta: não mirando os ganhos a curto prazo, mas as mudanças do sistema, que não são conquistadas passivamente, mas no grito, no fogo (preferencialmente metafórico) e na união.
Faça a Coisa Certa é um filme único, leve quando precisa e chocante no momento certo. Um filme corajoso dado seu ano de lançamento. Atemporal, em partes pela sua qualidade e infelizmente pela realidade que escancara.
Nota: 10
Encerro meu comentário também lembrando: o mês da Consciência Negra se finda, mas a luta não deve parar para ser resgatada em novembro do ano que vem. A música, o nosso grito, devem ecoar, nem que as pilhas se esgotem e o rádio seja destruído. Mook, stay black!
Bom dia, só não entendi:” ironicamente,mas nos Estados Unidos, italianos “.
Por que o ironicamente ?
Obrigado.