Por Anônimo
Pelo telefone, tocava a coisa nova. Foi nessa época que inaugurou-se a casa. Casa simples, casa forte, toda preta. Erguida no Morro da Conceição, ninguém soube dizer direito quem construiu. No passado, davam certeza ter sido feita com o som dos corpos em dança, batuques construtores. Depois, a casa passou a ser de Donga. Ainda depois, se dizia ser de Nelson, de Dorival, de Agenor, de Dolores, de Antônio Carlos e seus amigos, de Jorge, Dalva, Clara e até de Alcione. A cada hora se dava a certeza de um. A casa trocava de dono como os tempos trocavam as lembranças. Até houve tempos em que quiseram e pintaram a casa de branco. Todas as paredes, piso e teto, dentro e fora.
Toda segunda-feira, quem passasse perto juraria ouvir a música emanando de dentro das quatro paredes. Os de fora estranhavam o som, e perguntavam quem morava na casa. “A gente”, respondiam naturalmente os moradores das casas vizinhas e os frequentes da região. Muitas vezes já se jurou ver a própria casa balançando ao embalo do som. Não se sabe quem nem como, mas se dizia que um rádio era que tocava, sem interrupção, de dentro daquele terreno. O povo da região era contagiado. É preciso cantar, eles aprenderam.
De uns tempos pra cá, a casa foi fechada. Um pouco depois de pintarem-na de branco. “Coisa do governo” era o que se dizia na região. Tapumes em toda a frente da casa que dava para a rua. Não seria mais permitida nem tolerada a casa. Ou melhor, os sorrisos que as pessoas davam ao passar pela casa. Os sonhos que os vizinhos tinham durante a noite. Mas a verdade é que ninguém nunca conseguiu entrar naquela casa. Ela ficou tapada, com dois guardas à frente. E uma placa: “está proibido”.
Os anos passaram rápido. Passaram tristes ao silêncio. A música foi suplantada por outros barulhos, muito maiores e mais importantes e mais urgentes. Não havia mais os policiais. A placa, complementada com letra esdrúxula “…proibir”. Houve resistência às autoridades. Ergueu-se uma bandeira branca no telhado da casa. Mas as gerações se trocam, os tempos mudam e mudam as vontades.
Uns poucos ouvidos ainda atentos, umas poucas bocas ainda dispostas a sorrir juram ouvir baixinho, a velha música quando passam na frente da casa. Isso quando o mundo em breve trégua suspira.
Triste ver que não se tem permitido tanto canto e tanta dança para o mundo. Da casa, porém, das paredes envelhecidas com a tinta branca finalmente descascada para mostrar de novo sua cor, o Samba continua a emanar.
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