A franqueza, nas histórias e nas opiniões do Professor Piqueira

Comissão de Ética, Eleições para Diretoria e Reitoria, Movimento Estudantil, Ditadura Militar, Reforma Curricular

 

Entrevista com Professor Piqueira – 19/03/2025

 

Entrevistador: Diego Roiphe de Castro e Melo (Engenharia Civil, 3º ano)

Entrevistado: Professor Doutor José Roberto Castilho Piqueira (PTC Poli USP)

 

Era o princípio de uma tarde. Estava atento ao relógio e no caminho da sede da Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia, a FDTE, onde o José Roberto Castilho Piqueira, o Professor Piqueira, estaria me esperando. Já havia conversado com a figura em apenas uma outra ocasião, em sua sala, no temido PTC. Pelo retrospecto, estava muito animado com a possibilidade de entrevistar um docente que já foi vice-diretor e diretor da Poli e tinha as mais diversas experiências e visões acumuladas…

 

Formado e mestre em engenharia elétrica em São Carlos (EESC), doutorado e livre docente em controle e automação pela Poli, tem um currículo repleto, tendo sido vice (2010-2014) e diretor (2014-2018) da Escola Politécnica. Docente e pesquisador por excelência. 

 

DRCM: Como foi para o senhor retornar às cadeiras da Congregação – órgão de decisão máximo da Poli, conta com representantes docentes, técnicos-administrativos e discentes – depois de tanto tempo?

 

JRCP: Primeiro, eu deixei de ir à Congregação quando eu saí da Diretoria porque isso tem sido uma praxe dos ex-diretores. Embora você continue como professor da Escola, o fato de você ter exercido a diretoria muda um pouco sua relação com o conjunto, com o todo; então eu deixei de ir à Congregação não porque eu desconsidere a Congregação, a Congregação é o órgão máximo da Escola e tem sempre exercido um papel muito importante nas principais decisões da Escola. Eu resolvi ir a essa reunião em que a gente se encontrou – que eu não ia desde março de 2018 –, porque eu achei que tinha uma discussão muito importante, que era a distribuição de vagas para professores titulares, era a discussão do critério para essas vagas, e a discussão da distribuição dos novos “claros” docentes [vagas para professores doutores, efetivos]; dois assuntos muito importantes que dizem respeito à Escola Politécnica. E aí, prolongando um pouco a resposta, os critérios para a distribuição de cargos de professores titulares são muito importantes; a função de professor titular em qualquer instituto da nossa universidade é uma função de liderança, de trazer novas disciplinas, novas metodologias e linhas de pesquisa. Então, esses critérios para distribuição de cargos para professor titular são muito importantes e eles não podem ser “cartoriais” – você não pode ter um cartório, no sentido de “ah, neste cartório está faltando vaga e naquele está sobrando, então eu tiro deste e coloco naquele”, não. 

 

Quem vai ser um professor titular da Escola? Alguém em quem você confia. Primeiro que esteja engajado e goste da Escola – não só do laboratório dele, mas da Escola como um todo –; segundo, ele traz uma linha de pesquisa inovadora, fundamental para a sociedade; e terceiro, ele leva pros alunos, tanto de graduação como de pós-graduação, novas ideias, novos trabalhos, como acompanhar o que está acontecendo no mundo da ciência e da tecnologia, e das ciências humanas. Então eu queria ver e participar da discussão desses critérios; e fiquei muito satisfeito, achei que o resultado da discussão dos critérios foi muito bom, e, agora, como o critério não pressupõe “cartório”, não pressupõe departamento, ele vai ser aplicado de maneira transparente a todos.

 

Fiquei muito feliz de rever pessoas que não via há um certo tempo e de ouvir novas vozes – a Congregação hoje tem novas vozes, outras pessoas que se manifestam –; e perceber que a omissão não faz parte dos integrantes da Congregação, eles não são omissos, têm opinião, que pode ser divergente. Fiquei muito feliz, a discussão foi de alto nível e as pessoas não se furtaram a discutir. 

 

DRCM: Como o senhor enxerga hoje o seu lugar de ex-diretor perante a Escola? Você acha que muito do que o senhor fez foi levado pra frente? 

 

JRCP: Sua pergunta é complicada e um pouquinho capciosa…Algumas coisas que foram discutidas na minha gestão, por exemplo os critérios de vestibular, de entrada na Poli, acabaram sendo implantados, inclusive em toda a universidade. Então aquela batalha para deselitizar o ingresso na universidade foi uma batalha importante da gente, das pessoas que estavam comigo – eu não fiz nada sozinho –, e é uma batalha que eu considero vencida. Outra coisa que é interessante, eu criei a Comissão de Ética da Poli, ela é algo que foi iniciativa da minha gestão; depois, na gestão seguinte, a comissão mudou de nome, passou a chamar “Comissão de Ética e Direitos Humanos”, mas ela foi criada na minha gestão e é uma coisa muito importante dentro da Escola, porque ética é aquilo que diz respeito a todos. Porque tem uma diferença entre o que é legal e o que é ético: o que é legal, está na lei; o que é ético é o que beneficia a todos. 

 

Outra coisa também, a reunião do “Time”, dessa associação internacional, foi feita no Brasil pela primeira vez no comecinho da gestão seguinte, mas ela foi trazida na minha gestão; eu e o professor Marcelo, da Engenharia Mecânica, que negociamos isso. Então a reunião do Time, internacional, foi feita no Brasil, dentro da Poli, pela primeira vez. 

 

Uma coisa que a gente começou e até hoje não entendi o que aconteceu é que, com uma verba da Lei Rouanet, a gente resgatou e digitalizou todo o arquivo histórico da Poli, e ele estava, na minha gestão, à disposição de todos. E aí, acho que por falta de verba ou não sei o que, ele não está mais à disposição de ninguém – e, pior do que isso, a gente não sabe onde esse acervo digital está céu gostaria de saber onde está, porque ele foi totalmente digitalizado, com um projeto Rouanet realizado pela Poli em conjunto com o Ministério. A gente não entende como sumiu, entendo que talvez tenha motivos bem corretos, mas ele sumiu.

 

Outra coisa, eu batalhei muito pela ética individual dos alunos, era algo que me dizia muito respeito – e essa foi uma tarefa inglória. Foi uma batalha dura, que teve bons resultados, muita gente ajudou, aderiu e tal, mas, no frigir dos ovos, algumas coisas não mudaram muito, principalmente as questões de ética individual no trato das coisas da Escola. Acho que a Comissão de Ética e Direitos Humanos pode agir nesse sentido e não simplesmente ser um órgão que decide quando tem alguma discrepância de opinião; a Comissão de Ética também tem que ter uma postura proativa de disseminar a cultura da ética no corpo docente e discente da universidade.

 

DRCM: Este ano ocorrem as eleições para a Diretoria da Poli e Reitoria da USP, quais são as suas expectativas do que vão acontecer nessas eleições e o que o senhor acha que a gente pode esperar para este próximo mandato?

 

JRCP: Olha, eu não tenho nenhuma ideia nominal, mas eu acho que os cargos de gestão são de grande responsabilidade. Eu espero que o reitor e o vice-reitor ou reitora e a vice-reitora, o diretor e o vice-diretor ou a diretora e a vice-diretora sejam pessoas que estejam engajadas com a instituição e não com projetos pessoais. Então a minha expectativa é que os gestores eleitos sejam, em primeiro lugar, engajados com a instituição; em segundo lugar, sejam éticos, ou seja, olhem o bem-estar de todos. Em terceiro lugar, sejam pessoas de brilho acadêmico; não faz sentido ser gestor sem ter experiência forte acadêmica, conhecer bem o que é pesquisa, conhecer bem o que é ensinar, conhecer bem o que é fazer um projeto – ser um gestor é alguém que passou por isso. É alguém que, se você mandar ele de volta – isso é uma coisa importante, porque eu fui de volta, saí da diretoria e voltei, eu sou professor, sou pesquisador, tenho projeto, tenho bolsa de produtividade em pesquisa, a minha vida e minha atuação acadêmica são independentes do cargo que eu ocupo –; então eu gostaria que fossem pessoas que tenham o brilho independente do cargo que ocupam, e que o cargo que ocupam seja a maneira deles expressarem e procurarem a melhoria da universidade e das instituições que eles dirigem. Eu acho que, tanto na Poli como na universidade, existem muitos nomes aptos a exercerem isso. 

 

DRCM: Pensando nessas eleições, principalmente na eleição da reitoria, como o senhor acha que o Movimento Estudantil deve agir em uma situação como essa? Como o senhor enxerga a atuação do Movimento Estudantil hoje na universidade?

 

JRCP: Bom, eu não sou um especialista em Movimento Estudantil; eu acho que o Movimento Estudantil tem que se posicionar de maneira firme, preservando as regras democráticas, mas ter uma postura firme e se manifestar para o bem da universidade. O Movimento Estudantil tem obrigação de ter uma postura clara sobre a escolha dos nossos dirigentes; não quer dizer que ele vai escolher os dirigentes, mas ele vai ter uma postura ativa sobre essa escolha. E essa escolha é assim, porque na política brasileira hoje, ela deturpou tanto as relações que todo mundo fala que os políticos “são corruptos, não fazem as coisas corretamente”, mas bastou um político apertar a mão do cara para ele mudar de opinião sobre o cara que lhe apertou a mão. A gente vê isso toda hora, a gente conhece pessoas íntegras, que criticavam o governo, que criticavam certas questões, historicamente… e bastou um aperto de mão pra mudar. Então, o Movimento Estudantil tem que ter uma postura clara, firme e não pode ser suscetível a aperto de mão – porque tem muita gente que é suscetível a isso. 

 

Outra coisa que eu queria dizer é o que eu acho do Movimento Estudantil hoje. Eu acho que hoje a gente vive um momento diferente, em que o Movimento Estudantil está um pouco longe dos movimentos sociais – isso não é uma crítica, é um fato –; e, portanto, ele está ligeiramente esvaziado. Então eu acho que nessas eleições de reitoria, diretoria, o Movimento Estudantil tem uma oportunidade de se posicionar. E o “se posicionar” não é se posicionar de maneira a prejudicar e atrapalhar o processo, é participar do processo democraticamente e opinativamente, sem aperto de mão.

 

DRCM: Eu queria fazer um paralelo com o Movimento Estudantil na época que o senhor era estudante, como era e se o senhor participou…

 

JRCP: Do ponto de vista de Movimento Estudantil da minha época, ele era muito forte e eu nunca tive coragem suficiente para participar, eu estou sendo totalmente franco, eu tive amigos, conhecidos, que inclusive foram assassinados; lá na nossa república muitas vezes nós escondemos pessoas que participavam do Movimento e tinham que fugir, se esconder, mas eu nunca participei pela mais absoluta covardia. 

 

Eu entrei na Escola pelo MAPOFEI de 1970 e me formei em 1974, ou seja, eu estava na universidade quando houve um dos recrudescimentos da Ditadura e perseguição ferrenha em relação às pessoas que militavam em qualquer tipo de movimento – e que não militavam também, bastava alguém dizer que o fulano usava meia vermelha e pronto, estava preso.

 

DRCM: O senhor tinha comentado antes que tinha uma relação próxima com o Alexandre Vannucchi Leme…

 

JRCP: Ele foi meu colega desde a primeira série do ginásio até o terceiro científico, meu companheiro de jogar futebol. Quando ele entrou na Geo, eu entrei na Engenharia de São Carlos, na EESC-USP, no mesmo ano, o vestibular era separado, o MAPOFEI era separado. Nisso, eu meio que perdi o contato com ele, mas sempre tive amizade com ele e com a família e realmente era uma pessoa muito cara para mim, uma pessoa cuja morte pra mim foi algo muito duro e de grande abalo pessoal mesmo. Como te falei, um abalo muito mais pessoal que político, embora tive o abalo político evidentemente.

 

DRCM: Nessa época, mais especificamente em 1973, teve um marco cultural dentro da Poli, dentro da universidade, que foi o Show do Gilberto Gil. Isso marcou como o Movimento Estudantil da época estava próximo à cultura e próximo à sociedade…

 

JRCP: Eu acho que tinha duas coisas, a proximidade era porque o Movimento Estudantil era próximo e porque a cultura e sociedade também eram. Se você olhar para os anos 1960, 1970, a indústria cultural não tinha a intensidade que tem hoje; e muito da cultura se fazia dentro da universidade: o Chico Buarque, você sabe, o Guilherme Arantes estudavam na FAU, o Marcelo Tas estudou na Poli. Então você tinha muita gente ligada à cultura dentro da universidade. Isso não quer dizer que a universidade perdeu a cultura, tem muita gente que faz muita coisa de excelente valor cultural dentro da nossa universidade, mas a indústria cultural se afastou dela. Então você tem uma indústria cultural que investe em coisas de qualidade discutível e, ao fazer isso, ela leva uma grande parte da sociedade pra longe da universidade e, como consequência, pra longe do Movimento Estudantil. 

 

Então são duas coisas, a indústria cultural de monetarizou de tal maneira que ela afasta a universidade e afasta a sociedade também, então, na verdade, não é uma coisa que o Movimento Estudantil não participa, tem muita coisa interessante culturalmente nas universidades, mas a indústria cultural está longe. E tem um fenômeno, que eu não sei se tem grande influência, mas nós temos uma proliferação – que não tinha na época – de cursos, tidos como superiores, de baixo nível pelo país inteiro, então você não tem mais o mesmo mecanismo valor ativo. Pra sociedade em geral, fazer engenharia na Escola Politécnica é muito parecido com fazer engenharia em uma universidade qualquer, que dá metade das aulas à distância, que cobra 200 reais por semestre, coisa desse tipo. Então você tem a indústria cultural que saiu da qualidade e só quer fazer dinheiro.

 

DRCM: Nessa mesma época de resistência à Ditadura, e mesmo antes, o Movimento Estudantil era muito próximo de um debate pelo desenvolvimento nacional, com uma engenharia inserida dentro do Movimento Estudantil. Na sua opinião, como isso se perdeu? Por que hoje, são pouquíssimos, raríssimos os espaços de Movimento Estudantil em que mesmo se cita a palavra “engenharia”… 

 

JRCP: Isso é uma questão muito grave no nosso país que você está tocando… a sequência Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck, João Goulart – estou tirando o aspecto político – eram mentalidades desenvolvimentistas, então precisava dotar o país de infraestrutura, industrialização, geração de emprego, etc. Então, nesse ínterim, você tinha uma engenharia bem enraizada. O regime militar – também não estou falando da atividade dos subterrâneos, nem das atividades políticas –, mas o regime militar também sabia que isso era importante; durante a ditadura muita coisa foi feita de engenharia, a engenharia de telecomunicações teve grande desenvolvimento, a engenharia de computação teve grande desenvolvimento… O regime militar, se ele fez alguma coisa boa, foi o desenvolvimento da infraestrutura; a que custo não sei, não estou discutindo o custo. Quando houve o final da ditadura, ele foi marcado por um sucateamento da coisa pública; a coisa pública tinha tido um grande desenvolvimento e no final da ditadura ela foi sucateada e vendida totalmente pros governos neoliberais seguintes. Esses governos neoliberais seguintes tiveram uma importância muito grande pra politica democrática, é verdade, mas foram muito deletérios para a infraestrutura e desenvolvimento industrial; a indústria morreu, a indústria de infraestrutura está na mão de multinacionais, as estradas têm concessões, a telefonia tem concessões, tudo tem concessão aqui.

 

Então fica uma coisa assim: “não precisa engenharia, a engenharia a gente compra”, se você for olhar, o país virou um país de administradores e advogados, sem tirar o mérito deles – eles têm uma grande importância, mas não na hora de decidir coisas a respeito da infraestrutura. Você vê, é só andar por São Paulo num dia de tempestade… por que que a Enel é tão ineficiente? Porque ela ganhou quase de graça uma infraestrutura e ela não põe nada lá, ela não põe nada tecnológico; se tiver que por algo, ela traz de fora. O metrô, a mesma coisa; o departamento de computação da Poli tem um grupo fortíssimo em segurança em intertravamento do sistema de metrô – durante toda a história do metrô de São Paulo esse grupo fez todos os testes, auditavam o funcionamento do sistema de intertravamento, o que é fundamental, por ser uma obra de interesse público –; pois hoje, os novos contratos do metrô, a empresa que faz, ela mesma audita. Então você tem um desdém com a engenharia que vem com a mentalidade de que isso você pode comprar e não precisa pra fazer. 

 

Em resumo, a transição democrática no Brasil foi muito importante politicamente, mas foi muito deletéria do ponto de vista do desenvolvimento da infraestrutura e industrial – mas isso eu posso estar errado também, né?

 

DRCM: A questão do desmonte da engenharia nacional, principalmente de infraestrutura, também é muitas vezes relacionada ao processo da Operação Lava Jato; o senhor concorda com isso? 

 

JRCP: Eu não sei se eu sei falar sobre isso, mas, na verdade, a Operação Lava Jato tinha uma importância política, de desestabilizar partes do governo e de potenciais políticos, mas as obras que foram realizadas e depois auditadas eram de altíssima qualidade de engenharia, tanto que muitos desses engenheiros, ao perderem a função no país, emigraram, estão trabalhando em alguns outros países aí; então tinha um conhecimento acumulado sim. Só que aí, teve um remédio com efeito colateral maior que a cura, porque, pensa o seguinte: você é um engenheiro de barragens e você trabalhou na construção da hidrelétrica de não-sei-o-que; você sabe fazer barragem, isso é uma parte do acervo intelectual do país, mas o dono da sua empresa negociou lá uma propina; então, em vez de você pegar o dono da empresa e dar um jeito nele, você fecha a empresa, e, portanto, você pega esse acervo e joga no lixo, porque o cara vai trabalhar onde? Se não vai mais fazer barragem e ninguém mais vai fazer barragem ele vai trabalhar onde? 

 

Então, a perda da engenharia no país, ela contém dois fatores fundamentais que não podem ser esquecidos: o primeiro, é os governos logo após a Ditadura que privatizaram absolutamente tudo que eles puderam – e, ao fazer isso, a engenharia foi de roldão, mas ainda restava alguma engenharia, principalmente a de infraestrutura –; aí, veio a Operação Lava Jato e se encarregou de liquidar. Então hoje nós temos um conhecimento de engenharia muito bom, muito forte, jogado fora. Você vê isso, você está fazendo Civil na Poli, você tem aula com os maiores especialistas de estruturas, construções, etc do país! Quer dizer, a função desses caras não é fazer projeto pra Vale, é formar gente pra fazer projeto. Você tem um conhecimento muito forte e você joga – e aí você tem uma implicação no ensino mesmo – você joga um grupo de jovens lá pra aprender com o cara que mais sabe projetar ponte no país, você aprende a projetar ponte e aí durante o curso você fala “eu vou trabalhar onde? Eu não vou projetar ponte, eu vou trabalhar no banco…”. Então esse desmonte, ele transformou o país numa coisa de serviços e não mais de criação de infraestrutura. Como você vai recuperar isso? Francamente não sei. 

 

Aí, vou falar de uma coisa que eu entendo, tem mais de 50 anos que eu dou aula, esses caras ficam falando que “o problema da evasão na engenharia, o problema de não-sei-o-que, é o jeito de ensinar”, mentira! É a falta de perspectiva! Quando eu entrei na Escola, a aula de Cálculo era tão difícil quanto é hoje, talvez até mais, mas eu assistia porque eu falava “bom, daqui a cinco anos eu vou ganhar uma grana trabalhando de engenheiro”. Agora, você vê “Teorema de Stokes” e pensa “o que eu vou fazer com Teorema de Stokes? Eu vou trabalhar no banco…”. Então, tudo isso tem uma repercussão social importante. 

 

DRCM: Como o senhor está acompanhando todo esse processo de mudanças curriculares e educacionais a nível, Poli, USP e nacional? Como o senhor enxerga isso?

 

JRCP: Eu enxergo como um movimento das escolas particulares pra facilitar a vida e diminuir a evasão dos seus cursos, esse é o fulcro; e aí você usa um discurso correto: “ah, o curso é muito difícil…” ué, se engenharia fosse fácil todo mundo fazia uma antena de radiotelescópio no quintal. Engenharia não é simples, assim como medicina não é simples, fala pra um professor da Medicina Pinheiros que agora você vai ensinar de um jeito… ele vai falar “vai tomar banho, o cara tem que saber anatomia, tem que saber fisiologia, se não o cara não vai ser bom médico!” Engenheiro a mesma coisa, tem que saber física, tem que saber matemática. “Ah, mas a gente fica com uma coisa muito abstrata”, eu nunca vi matemática ser concreta! Então você mascara um discurso, você mascara com uma coisa real, que é que engenharia é difícil. Podemos ensinar engenharia com outros métodos? Podemos! Eu mesmo estou dando uma disciplina agora, eu aos 72 anos de idade, eu dou uma disciplina que nas primeiras duas horas eu dou a teoria, nas duas horas seguintes, junto com os alunos, eu desenvolvo programas para resolver os problemas que eu propus na aula teórica; o que isso tem de fora do normal? É isso, você não ensina deixando de ensinar, porque falam “agora eu vou dar um curso melhor porque eu não vou ensinar isso, não vou ensinar aquilo”, não é assim. Você tem que ensinar o cara a enfrentar. E aí o professor diz “ah, mas o pessoal agora entra e não sabe muita matemática” – tem muito cara que fala isso –, ué, ensine! Não sabe muita matemática, ensine! Vamos reformular o curso assim: entra sem saber matemática? Tá bom, então no primeiro ano nós vamos ensinar matemática. Isso é reformular o curso com seriedade, não é falar assim: “nós vamos dar o curso de tal jeito que ele não se desmotive”, não, é ensinar o que o cara não sabe! “Ah, vamos falar a linguagem do aluno”, isso é a maior besteira que existe, a linguagem do aluno ele já sabe, ensine outra! Ensine alguma coisa nova, você está lá pra fazer isso! “Ah, vamos despertar a criatividade”, vamos, com conhecimento; criatividade sem conhecimento é nada. Ou você acha que tem algum músico criativo que não sabe uma escala musical? Ou você acha que tem algum jogador de basquete criativo como Wlamir Marques [1937-2025] que não passava o dia inteiro arremessando bola de fora e fazendo bandeja? Não existe isso, criatividade requer conhecimento. 

 

Então, o que eu acho dessas reformas, eu acho que precisa ensinar engenharia. Ah, um ensina de um jeito, outro ensina do outro, tudo bem; mas, no frigir dos ovos o cara tem que saber a matéria. Como dizia no meu tempo, “tem que saber a lição”. 

 

DRCM: O senhor se caracteriza politicamente como sendo de esquerda, imagino? 

 

JRCP: Não, eu me caracterizo por ser uma pessoa que vê qualidades na esquerda e vê qualidades na direita. Primeiro eu sou uma pessoa que não vê muito esse negócio de esquerda e direita, porque isso é rótulo, e é um rótulo mal usado, porque as pessoas acham que direita é o cara que é fascista, nazista, esquerda é o cara que é comunista – tudo bobagem. Eu me considero uma pessoa preocupada com os destinos da humanidade e do planeta, se isso é direita ou esquerda, não sei; que eu me preocupo com as pessoas que estão jogadas aí na rua, que eu me preocupo com essa bobagem de que você não pode taxar as grandes fortunas, mas você pode taxar as pequena, né? Então eu sou uma pessoa que me preocupo com o bem-estar do que está à minha volta, se isso é direita ou esquerda não sei. Mesmo porque no Brasil hoje, se você falar que a Terra não é plana e que você tomou vacina, você já é comunista. Não sou nem de esquerda nem de direita porque eu conheci gente de direita brilhante, conheci gente de esquerda brilhante, conheci gente dos dois lados que não serve pra nada, então é o bem-estar de todos que vale, não o meu só. 

 

DRCM: Antes de encerrar, queria trazer um pouco mais pro pessoal, o senhor citou o Wlamir, por acaso você acompanha basquete? 

 

JRCP: Olha, por incrível que pareça, eu joguei, na juventude, vôlei, basquete e futebol, o que eu era bom mesmo era basquete, apesar da minha baixa estatura. Inclusive, um cara do meu tempo, da minha geração lá de Sorocaba, me achou hoje e me mandou as coisas mais esdrúxulas que você pode imaginar, uma delas é o time de vôlei campeão do campeonato da cidade de Sorocaba em 1968. Então eu acompanho sim. E, atualmente, eu acompanho duas coisas de perto: NBB, Novo Basquete Brasil; e Superliga Feminina [de vôlei]. Futebol, eu acompanho o Corinthians, desisti da Seleção Brasileira. 

 

DRCM: Pensando na juventude e na realidade de hoje, qual livro literário, qual filme e qual música você recomendaria pros politécnicos e pras politécnicas?

 

JRCP: Nossa, tem muita coisa, tem muito livro… eu indico esse, chama Maneiras de Ser, o autor é James Bridle, acho que é um livro muito importante de a gente ler considerando o momento atual. Filme, também tem muitos, tem muitos… Sing Sing, vale a pena. De música, sou muito eclético, gosto muito do Harry Belafonte, eu aprendi a ouvir desde adolescente; Bob Dylan; claro, tem muitos brasileiros muito bons, acho o Gilberto Gil fantástico do ponto de vista de ritmo, mas eu gostaria de prestigiar o samba paulista: Germano Mathias. O Vinicius de Moraes falava que São Paulo era o túmulo do samba, e o Germano fez uma música em resposta… o samba paulista é muito rico.

 

DRCM: Bom, professor, da minha parte foi tudo! Muito obrigado pela entrevista, pelo papo!

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