A história do jornal O Politécnico é complicada (e conturbada). Ditaduras marcaram o seu nascimento e o seu “fim”. Golpes e revoluções fazem parte das suas páginas.
Para entender o seu surgimento, é preciso entender também as circunstâncias que o antecederam. O nascimento do jornal é indissociável à ascensão do regime varguista em 1930, por meio da Revolução Constitucionalista, que colocava um ponto final na política do café-com-leite dentro do Brasil. Após essa transformação abrupta, surgiu em São Paulo um movimento de oposição à Nova República, o qual posteriormente ocasionou a Revolução de 1932. Nesse conflito, a Escola Politécnica acabou se tornando um centro científico, por conta do fornecimento de apetrechos bélicos para as revoltas. Todo esse evento acabou por fortalecer o posicionamento político e a participação no movimento estudantil por parte do Grêmio Politécnico.
Os anos seguintes foram caóticos. A reconstitucionalização do país em 1934 e a subsequente fundação da USP trouxeram grandes expectativas junto a novos ares de mudança. Todavia, em 1937, aconteceu o golpe que deu início à ditadura do Estado Novo. Após isso, o universo acadêmico ficou marcado por inúmeras manifestações estudantis em prol da democracia, as quais se exaltaram ainda mais em 1943, com a morte de um estudante de Direito no largo São Francisco.
É em meio a todo esse fervor por mudança que nasce O Politécnico.
O jornal foi efetivamente criado em 1944, quando foi registrado no DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão intimamente ligado à censura do Estado Novo. Já havia outras revistas acadêmicas na Poli, mas foi só nesse momento que surgiu O Politécnico, com o espírito e o nome que conhecemos hoje. Major Dutra, então diretor-geral do Departamento, classificou-o como um boletim, impondo restrições quanto aos seus anúncios e publicações, justamente por conta do posicionamento do Grêmio Politécnico contra a ditadura varguista. Mesmo assim, todas as entidades acadêmicas do movimento estudantil continuaram a exercer pressão contra o regime até seu inevitável fim, em abril de 1945.
Com o encerramento dessa ditadura, o jornal amadureceu, criando, por exemplo, a tradição de diretores anuais e estreitando seus laços com o Grêmio Politécnico. Diversos causos aconteceram durante esse período (os quais, inclusive, merecem textos próprios), mas o foco hoje é contar o nocaute d’O Politécnico e o nascimento do Poli Campus, ocasionados justamente pelo golpe de 1964.
Para a melhor compreensão dessa mudança, é preciso voltar um pouco e entender o que realmente estava acontecendo naquele ano. Em um resumo extremamente breve, o então presidente do Brasil, João Goulart, foi deposto por um golpe militar. Esse movimento pôs um ponto final na Quarta República e deu início a um dos períodos mais abomináveis da história do país, marcado por uma ditadura que censurava, torturava e assassinava seu próprio povo.
Esse golpe afetou (e muito) a USP. Entre 1960 e 1964, o movimento estudantil (assim como o Brasil) vivia um dos seus momentos mais intensos, aflorava no país uma profunda aspiração por transformação. E com os politécnicos não era diferente: debates acalorados sobre pontos críticos correlacionados à vida estudantil, assim como greves, incorporavam-se ao cotidiano da época. Esse embate constante trazia diversas reivindicações, tais como a Reforma Universitária e a presença de um terço de participação estudantil em todos os órgãos técnicos e administrativos. O Politécnico, inclusive, teve participação ativa em várias dessas pautas, noticiando-as e as debatendo. A movimentação constante no país encaminhava toda a situação para um ponto crítico, o qual teve um desfecho catastrófico, como descrito anteriormente.
Após a deposição de João Goulart, o movimento estudantil, estupefato, começou a se orquestrar, posicionando-se contra esse golpe (e sim! o nome do que aconteceu é golpe). Existem documentos emblemáticos (e curiosos) da época, como a convocação da UNE (União Nacional dos Estudantes) para uma greve estudantil em escala nacional, hasteando, justamente, a bandeira da liberdade e da legalidade democrática.
Toda a indignação, o inconformismo e a raiva são justificáveis diante do cenário da época. A interferência de países externos na política nacional por conta da Guerra Fria, a expulsão do presidente e o desaparecimento (e morte) de centenas criaram um cenário absurdo, intolerável.
A criticidade da situação fica ainda mais escancarada quando comparada com o momento vivido anteriormente. Como um período marcado por tanta transformação e mudança havia sido bruscamente substituído por um que cerceava a liberdade e o espírito da sua população? Como tão de repente um movimento que conseguia reivindicar um terço de participação dos alunos nas decisões administrativas havia perdido sua força e cinética?
É em meio a esse choque que O Politécnico “morre”, dando espaço ao surgimento do Poli Campus, um jornal que expressa precisamente o ponto de vista dos politécnicos em meio à ditadura. Os sentimentos de amargura em meio à repressão e a faísca fúnebre de esperança por um futuro menos brutal são evidentes ao ler suas edições. Desde notícias a poemas, todos os textos possuem um peso ao serem lidos, que direta ou indiretamente conseguem aproximar o leitor dos ares da época.
As edições do Poli Campus contam os absurdos que ocorriam na ditadura , narrados do ponto de vista de quem os viveu. Um exemplo emblemático foi a intervenção policial no Conjunto Residencial da USP (atual CRUSP) em 2 de julho de 1967, que visava despejar os alunos que não haviam conseguido sua vaga para morar e, assim, acabavam ocupando apartamentos vazios. A abordagem policial tinha o objetivo de expulsá-los, ideia que não foi bem recebida pelos estudantes, ocasionando tumulto e conflito físico dentro da universidade. O embate teve como consequência o regimento de um regulamento disciplinar para alunos de toda a USP. Mais tarde, em dezembro de 1968, o CRUSP acabaria por ser fechado, desalojando 1500 universitários e provocando a prisão de muitos deles.
A situação torna-se ainda severa quando entra em vigor o Ato Institucional de número cinco, que, ao dar mais poder para o executivo, permitiu a intervenção do Estado em qualquer área que fosse contra o seu interesse político. A censura e os desaparecimentos tiveram o seu ápice, pavoneando toda a brutalidade e a injustiça do regime. Não à toa, nos anos seguintes à sua aplicação, o número de edições do Poli Campus cai, e os posicionamentos políticos passam a ser sentidos apenas nas entrelinhas dos textos.
Nesse contexto, é lançada a edição de abril de 1973 com a capa “Censura e Gastronomia”, que, assim como outra do mesmo ano, foi carimbada pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que classificou o Poli Campus como um “jornal submersivo”. Essa intervenção criou um cenário de terror na equipe editorial da época, ainda mais considerando o período crítico vivido naquela fase da ditadura. Mesmo assim, o jornal continuou tendo sua participação ativa dentro da Escola Politécnica, dando o espaço para seus alunos se expressarem política e artisticamente.
A importância do jornal não se restringiu a noticiar os eventos enquanto eles ocorriam. Talvez mais importante do que isso seja registrar o quão absurdo era o cotidiano da época, e, assim, contribuir para que ele não se repita, assegurando que a morte e o sofrimento daqueles oprimidos não sejam em vão. A lembrança do passado é a única memória capaz de impedir o futuro de tapar nossos ouvidos e bocas.
Nesse sentido, uma das reflexões mais vitais é a de que a história é escrita no presente. Muitas vezes, ao lermos os livros de história, vemos figuras políticas ou mártires como pessoas distantes, inalcançáveis. O que não percebemos é que eles eram justamente como nós. Os politécnicos da revolução de 1932 também andavam de transporte público, corriam para almoçar e bombavam em Calculo III. Os grandes nomes, que hoje são nacionalmente conhecidos, já foram apelidos regionais. Tudo tem um começo no “agora”, ninguém nasce sabendo que vai fazer história, ela somente acontece.
Revoltar-se com questões políticas não é apenas um direito. Se você guarda respeito pela luta dos que te antecederam, ou valoriza o progresso social da humanidade, é seu dever se indignar com possíveis ameaças de voltarmos ao escuro. Talvez seja mais simples imaginar-se como indiferente na luta, e que os grandes nomes só são grandes porque nasceram com grandes predestinações. É você decide a pegada que vai deixar na história e se dará ou não a chance de seu nome ser lembrado. A história só existe no passado, mas é escrita no presente e muda o futuro.
Rafael Varanda Bernardo
Engenharia Mecatrônica, 2º Ano
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