Por Rafael Varanda Bernardo — Engenharia Mecatrônica, 2º ano.
Imagine-se com cinco anos de idade. Encare isso como uma súplica do autor, um pedido sincero por uma jornada de leitura ativa! Visualize! É como se enxergasse seu reflexo mais novo num espelho imaginário, atrás das linhas deste texto. Além do diferente estilo de cabelo, do sorriso inocente (com alguns dentes faltando), da pele que nem imaginaria os futuros problemas com acne, perceba o ponto central: os seus olhos.
O olhar infantil é destoante, desnorteante. Distante? Mas por quê? O que mudou em você? Seria a malícia? De fato, o assassinato da sua inocência pode ter sido dolorido, mas seria suficiente para tirar aquele brilho? Seria a razão? É outorgado que deixemos de sentir, para conseguir pensar? Penar? Não, não pode ser, é preciso que exista algo a mais.
Uma luz, uma áurea. Mas diferente. Quando que o brilho nos olhos tornou-se um sinal da iminência de lágrimas? Não que as emoções sejam maléficas, mas para onde foi a luz sincera que refletia na sua córnea simplesmente ao encarar o vazio? O que existia naquele vazio? A curiosidade? O encanto? Os sonhos!
Aquele olhar carrega consigo os sonhos de alguém que ainda não teme o impossível. Alguém que se imagina voando com seu guarda-chuva em meio a uma tempestade! Num grande palco apresentando-se para uma plateia infinita! Dentro de um foguete indo em direção às distantes estrelas do céu, não temendo os perigos e as incertezas do seu caminho! Lutando com dragões! Salvando vidas! E das mais incríveis maneiras rindo daquilo que é dito como infactível!
Essa sinceridade sonhadora vai desaparecendo à medida que envelhecemos. Aos poucos percebemos que nosso guarda-chuva não é capaz de alçar voo durante uma tempestade, ou que não é tão simples tornar-se um maestro de uma grande orquestra. É inviável economicamente ter um foguete e dragões (ainda) não existem. Por fim, a revelação mais brutal (e que assassina de vez esse brilho nos olhos) é a que você não vai conseguir salvar o mundo sozinho, nem mudá-lo. Certamente um dia o seu nome cairá no esquecimento.
Algum dia ninguém saberá quem foi Cleópatra, Mozart ou até mesmo Newton. Nada é eterno e infelizmente (ou felizmente) nem tudo é possível. A descoberta, apesar de violenta, nos ensina um valor importante: viver no presente, aproveitar cada segundo como se fosse o último, pois ele pode ser.
É difícil perder o encanto. Felizmente a humanidade criou, logo em seus primórdios, uma ferramenta que combate esse vazio cinza. Algo que consegue, mesmo que momentaneamente, fazer com que nos sintamos da mesma forma, com o mesmo sorriso torto e banguela de quando tínhamos a idade dos sonhos. Para consertar uma porta usa-se um martelo, para reviver uma alma usa-se a arte.
Homens paleolíticos pintavam animais em cavernas, quase de forma religiosa. A história das primeiras civilizações é contada por suas esculturas e pinturas que sobreviveram. Até mesmo as igrejas medievais contavam histórias por meio das suas paredes e tetos pintados. A arte é o limiar que distingue o “sobreviver” do “viver”, o combustível para a alma, uma máquina do tempo que traz de volta aquele magnífico olhar.
Depois de toda essa jornada ao seu desconhecido passado, enfim chegamos no aclamado Outer Wilds, obra de arte, em forma de jogo eletrônico, que dá nome ao texto! Nesse ponto você deve estar se perguntando o que existe nesse jogo de tão importante para o autor (fora das suas próprias faculdades mentais provavelmente) te guiar em uma viagem a tempos tão distantes da sua infância. Outer Wilds é diferente, transcende o “sentir-se como uma criança”. Durante toda sua extensão, eu verdadeiramente fui uma criança e uma parte daquela luz que havia desaparecido voltou a brilhar, mas de forma diferente.
Lançado em 2019 pelas desenvolvedoras Annapurna Interactive e Mobius Digital, Outer Wilds te coloca na pele de um jovem astronauta num sistema estelar muito distante do nosso (em tempo e espaço). O sistema em questão, assim como a espécie do personagem, são caricaturas do nosso Sistema Solar. Desta forma, você não é um humano no Planeta Terra, e sim um lenhoso no Planeta Timber Hearth. Sua missão é desvendar os mistérios por trás de todo o espaço que o circunda, sendo a sua curiosidade o seu recurso mais importante nesta jornada (junto com seu batedorzinho, claro).
O jogo consegue mesclar de maneira orgânica a história, a ficção e a fantasia. Seu enredo tem como foco descobrir sobre os Nomai — povo que habitou o seu sistema natal muito antes da sua espécie sequer ter existido. Investigando vestígios, textos e gravações, você descobre informações sobre o surgimento e o fim desse povo, como também da sua busca incessável pelo “Olho do Universo”, conceito que você (naturalmente) não faz a mínima ideia do que seja. Toda a trajetória desse povo é contada pelo cenário, cabendo a você ligar os pontos, como um verdadeiro arqueólogo numa jornada ao desconhecido.
Além disso, Outer Wilds rompe com todos os limites físicos da vida real e ri dos infelizes matemáticos que gostam de pisotear nossos sonhos. O universo e a física são tratados com a leveza da fantasia infantil, brincando com os conceitos atrofiados pelas fórmulas chatas. Viagens que no mundo real demorariam meses, levam segundos, e praticamente nada é impossível. Você pode atravessar a atmosfera densa de Júpiter, entrar num buraco negro ou até mesmo dentro de um cometa, retratando precisamente o sonho de qualquer um que em algum ponto já se imaginou como um astronauta.
Quando você se dá conta, já está totalmente entregue àquela história, com os olhos vidrados, perdido para descobrir mais e mais. Conforme adentra nesse profundo universo, você percebe que não se trata apenas de uma história de astronautas e de exploração espacial, existe muito mais. Outer Wilds te ensina sobre a busca ao conhecimento, sobre o renascer e, acima de tudo, te lembra o que é sonhar acordado e ter delírios pensando, formulando teorias.
A paixão é tanta ao imergir na história, que você deixa de se preocupar com qual será o seu final, ou se sequer existirá um final. Tudo que você quer é entender, sentir o frio na espinha enquanto mergulha de cabeça em todo aquele ambiente. E, quanto ao final, ele consegue ser tão maravilhoso quanto todo o resto do jogo. Te deixa em lágrimas, como se você estivesse vendo o último ato de uma orquestra, em que o choro só escorre no seu rosto sem que você saiba o exato porquê de isso acontecer.
Sempre fui um dos malas que se recusava a dar nota 10 para qualquer coisa — afinal, nada é perfeito —, mas não existiria outra nota para essa obra. São infinitas as surpresas que me neguei a estragar no texto, no sonho de que algum leitor interessado realmente entregue-se à experiência, desvendando sozinho os mistérios que lhe serão postos.
Nisso chego ao que Outer Wilds realmente significa para mim. Não se trata apenas de um videogame, ou qualquer história, a experiência foi a principal faísca que me fez despertar uma incessante busca pela arte. Graças a Outer Wilds, recorri à escrita como forma de expressão artística, assim como a paixão por instrumentos musicais e muito mais. A emoção e a profundidade, além do despertar de um sonho infantil acabaram por fazer com que a história fosse um ponto de virada em minha vida, principalmente durante a época de isolamento social.
O objetivo deste texto não é apenas incentivar o máximo de pessoas a conhecerem essa obra não tão famosa (embora desejasse muito que isso acontecesse). A Jornada ao Desconhecido mencionada no título é, na verdade, uma busca interna por aquilo que devolva não só o brilho nos seus olhos, mas também os sonhos que foram esmagados pelo cinza do mundo real — que te emocione sem que você sequer entenda a razão.
Acima de tudo, que seja um manifesto à busca pela arte, nas mais diferentes e impossíveis formas. Escreva um texto, desenhe algo, toque um instrumento: sinta-se vivo! A vida torna-se colorida quando os pensamentos pesados são descarregados em forma de poesia.
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