Sobre o aborto e a interseccionalidade

Protesto sobre o direito de aborto na França, em maio de 1973.

A Manu

Há pouco tempo, na primeira semana de maio, ergueu-se dos Estados Unidos uma discussão fervorosa. Pautada simultaneamente pelo terror de quem vê arrancados seus direitos, o ardor religioso de uma aguardada imposição moral e as técnicas considerações jurídicas a que os dois primeiros não se encontravam em posição de se atentar, ela tratava do vazamento de um documento que anunciava a possível revogação da garantia da liberdade abortiva.

O quanto já não se descreveram círculos no debate desse tópico? A bem da verdade, há muito se tornou mera polêmica (o elemento mais reles da discussão pública, desprovido de qualquer valor construtivo). Por isso, de pronto resume-se tudo aquilo que já é lugar-comum:  abortos clandestinos são frequentes e apresentam alto risco à saúde da mulher; a descriminalização, uma vez que prescreve também acompanhamento de saúde mais amplo, pode diminuir o número de abortos efetivamente realizados (vide o caso de Portugal); ninguém tem o dever legal de salvar uma vida se isso coloca a sua própria em risco; o Estado da esmagadora maioria dos países ocidentais se pretende laico. Evita-se aqui a disputa filosófica pendular da natureza do feto — pouco importa ante aos aspectos práticos apresentados. Da mesma forma, de acordo com o mesmo propósito utilitarista, hão de ficar de lado os dissensos jurídicos, que não deixam de ter seu lugar em outros espaços — há maiores urgências do que a ética do vazamento de uma declaração ou o papel legislativo de tribunais. Adiante, então, estando estabelecido o básico.

Um dos aspectos mais perplexantes da ameaça apresentada pelo documento, é, sem dúvida, o revogar de direitos. Soa, de fato, curioso ao ouvido democrático. Tudo, porém, explica-se: a descriminalização do aborto nos Estados Unidos foi determinada pela Suprema Corte na decisão Roe v. Wade, de 1973. E qual não foi o parecer vazado senão uma votação preliminar que previa a invalidação dessa decisão? A mudança vem seguida, é claro, do mandato de Donald Trump, que indicou à Corte três dos seus atuais nove integrantes (tendo os republicanos Bush, pai e filho, indicado outros três). 

A esse ponto surge a questão de extrema legitimidade: a que serviria a um brasileiro detalhar essas minúcias se nem sequer chegamos a ter o direito que os estadunidenses temem perder? Não, a resposta não é um vago dizer sobre a Janela de Overton e o ilustre status que a América Latina possui de quintal dos Estados Unidos; convém manter em mente que não há nada tão ruim que não possa piorar para o restante da leitura.

Roe v. Wade goza de um certo reconhecimento pelo público geral. Tratando-se de Obergefell v. Hodges, entretanto, arrisca-se afirmar que o mesmo não se aplica; é importante saber que consiste em outra decisão da Suprema Corte norte-americana, desta vez tratando do reconhecimento e da regularização do casamento homoafetivo, datada de 2015. Talvez se deva sua relativa obscuridade ao simples fato de que ela possui um análogo mais antigo no Brasil, a decisão de 2013 do Supremo Tribunal Federal que determina, via jurisprudência, a emissão de certidões de casamento a casais do mesmo sexo por qualquer cartório do país. 

Enfim se esclarece a sinistra necessidade de atentar-se aos ocorridos dos Estados Unidos: reportagens sobre a fragilidade de Roe v. Wade alertavam para a periclitância de Obergefell v. Hodges. Considerando a mimese — defasada em dois anos, como é praxe — da política brasileira em relação à estadunidense (à tragédia há de se seguir a farsa, afinal), há motivos para temer pelos já parcos direitos LGBT conquistados no Brasil. Pode-se resgatar a onda de casamentos homoafetivos oficializados entre a eleição do reacionário Jair Bolsonaro e sua posse, resultados do medo de que logo eles não fossem mais possíveis; e alertar que, apesar de ser o último ano de seu mandato, não se deve acreditar que o perigo acabou. Os indicados dessa gestão ao STF, Kassio Nunes Marques e André Mendonça, lá ficarão por longos anos.

A situação afinal ressalta a fundamental interseccionalidade dos movimentos sociais — se eles são comprometidos a um tempo pelos mesmos agentes, não há por que não se unirem em resistência. 

À luta!

Laura Carmieletto Saran, Engenharia Química, 1º ano

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