O Politécnico viu: Dogville

Nicole Kidman em Dogville (Divulgação: Lions Gate)

Dogville é uma pacata cidade localizada na região das Montanhas Rochosas nos Estados Unidos. Os seus moradores são pessoas boas e honestas e vivem suas vidas normalmente até o dia em que tiros são escutados e uma jovem chamada Grace (Nicole Kidman) chega à cidade. A moça é gentilmente recebida por Thomas Edison Jr. (Paul Bettany), escritor e conselheiro moral, e aparentemente foge de seu passado misterioso. Os moradores decidem acolher Grace desde que ela mostre o seu valor para o povo de Dogville. Grace consegue a admiração dos habitantes, porém, aos poucos os eventos tomam contornos sinistros e a recém chegada passa a sofrer desprezo e abuso de todos.

Dogville (2003) é escrito e dirigido pelo polêmico e divisivo diretor dinamarquês Lars von Trier e recebeu 23 premiações e 34 indicações ao redor do mundo, incluindo uma nomeação para Palme d’Or no Festival de Cannes. Além disso, é tido como um dos melhores filmes do século XXI pela BBC e pelo The Guardian. Von Trier foi fundador do movimento Dogma 95 junto ao seu conterrâneo Thomas Vinterberg, que buscavam um cinema mais realista e menos comercial e impunham diversas limitações técnicas para seus integrantes, como câmera na mão, ausência de filtros, de truques fotográficos e de iluminação artificial, entre outros. Muitas dessas características são herdadas por Dogville que se passa inteiramente em um galpão escuro e a cidade é totalmente construída a partir de pequenos móveis e delimitações feitas à giz no chão.

“Mas de quanta sujeira meu coração é capaz! Acima de tudo: é sujo, infame, nojento, nojento!”
Crime e Castigo (1866), Fiódor Dostoiévski

Lars von Trier pode soar presunçoso, arrogante e principalmente um tremendo babaca devido às suas inúmeras declarações polêmicas. Porém, tudo isso são apenas jogadas de marketing, é necessário para apreciar de fato sua obra se desgarrar de qualquer tipo de crença e de esperança que  tenha na humanidade. O cinema proposto por von Trier visa pôr uma pedra no sapato de seu espectador, fazê-lo enxergar a essência humana como ela de fato é e não como o cinema hollywoodiano, por exemplo, La La Land (2016) e It’s a Wonderful Life (1946)  — apenas citando as nossas investidas cinematográficas mais recentes —, aparenta. Enfim, despidos da moralidade tórpida ocidental, tão comumente vendida nas obras de arte, podemos analisar o cinema de Lars von Trier.

Comecemos pelo título da obra: Dogville (“Vila dos cães” em tradução livre). Assim como diversos outros elementos, o título possui um simbolismo bíblico. Segundo a fé cristã, os cães são in effigie [simbolicamente] tanto criaturas impuras quanto seres renegados e do martírio, “ficarão de fora os cães e os feiticeiros”, diz Apocalipse 22:15. Há três figuras importantes no longa: Grace, Thomas Edison Jr. e o cachorro Moisés. 

Grace (“graça” em inglês), como o próprio nome diz, representa a graça divina. Ao longo do filme, Grace sofre diversos abusos em troca da sua estadia na cidade de Dogville, o que os moradores chamam de quid pro quo. Grace perdoa os seus abusadores e os exime de seus pecados, bem como assume para si a culpa, note a semelhança de Grace com a imagem de Jesus Cristo. Todavia, no desfecho do longa, a protagonista toma consciência de si e principalmente da essência do ser humano e toma uma decisão drástica, “pelo bem do ser humano que era a própria Grace (graça)”, diz o narrador. Observe, na conclusão da obra, a oposição do pathos entre o Deus vingativo e punitivo do Velho Testamento e o Deus piedoso e fraterno do Novo Testamento metaforizado pela personagem de Grace. Thomas Edison Jr., uma clara referência ao inventor estadunidense da lâmpada, faz uma alusão aos pensadores iluministas que buscavam trazer a razão para a sociedade europeia — repare na relação entre o seu nome e o seu papel na trama. Tom também é uma representação in praxi [na prática] da moralidade universalista kantiana, algo que tem desdobramentos paradoxais no desfecho do filme. O cão Moisés também é outra evidente referência. Moisés é a figura bíblica responsável por libertar os hebreus e levá-los à Canaã, a terra prometida. Em Dogville, o cachorro Moisés desempenha figurativamente a mesma função do Moisés bíblico na conclusão do filme e é um dos pontos centrais para a compreensão da tese de Lars.

Conforme dito na introdução, o filme herda elementos do Dogma 95, como a câmera na mão. Todavia, distancia-se desse movimento ao trazer inovações, por exemplo, iluminação artificial e o uso da câmera em plongèe e de time-lapses — imprimindo dinamismo à obra. Além disso, a principal influência para Dogville é o teatro do alemão Bertolt Brecht, que realizava ensaios sociais e filosóficos por meio de suas peças, de modo a romper a passividade do espectador. A narração espetacular realizada por John Hurt confere ironicamente um tom fabular à obra, ao passo que remete diretamente ao Barry Lyndon (1972) de Stanley Kubrick e traz profundidade para os habitantes de Dogville. Esse aspecto é acentuado pela trilha sonora que é composta por versões alternativas de músicas barrocas de Vivaldi, Albinoni e Pergolesi. 

Naturalmente, o que mais chama a atenção em Dogville é a construção (ou desconstrução) do espaço. Toda a ação do longa se concentra na cidade de Dogville, construída a partir de marcas de giz no chão em um galpão escuro, e nenhum dos personagens jamais foi tão além dela.  Nesse sentido, Lars critica a sociedade norte-americana que mantém a sua cultura intacta e é incapaz de conceber empatia com o diferente. A ausência de paredes desvela a natureza da ética dos cidadãos de Dogville. Há cenas de extrema violência enquanto os habitantes continuam normalmente as suas atividades cotidianas. É assim que a cidade de Dogville opera e obtém seu sustento, sob o egoísmo e o sucesso individual acima dos princípios morais — os mais horrendos atos são justificáveis para os moradores.

O eixo temático de Dogville é a desconfiança do bem. É interessante notar a relação que o filme faz com a obra Genealogia da Moral de Friedrich Nietzsche. Nesse livro, Nietzsche argumenta que o conceito de “bem” é construído pela associação do que é “bom” ao que é nobre. Historicamente Nietzsche observa que as pessoas tidas como boas eram aquelas da alta casta social e o ruim aos da classe baixa. Contudo, o  surgimento da fé cristã subverte esse paradigma e classifica o que é bom aos fragilizados e humildes. A visão de Nietzsche sobre a moral é trazida por Lars von Trier para o seu filme. Grace inicialmente é considerada uma pessoa má pelos cidadãos e passa a exercer os trabalhos mais indesejados para permanecer viva. Aos poucos, a protagonista consegue a “simpatia” de todos por meio da realização de seus desejos individuais e há a subversão de sua imagem ruim, passando a ser considerada uma pessoa boa e amável — para compreender essa mudança também é fundamental observar o simbolismo de Grace descrito anteriormente. Em Genealogia da Moral, Nietzsche propõe uma transvaloração dos valores (Umwertung aller Werte), ou seja, inverter a balança da moral, suprimir ideais anteriormente considerados bons, por exemplo, a piedade. Von Trier também opta por uma conclusão semelhante para o seu longa-metragem.

Dogville é uma obra-prima, um filme único e memorável na história do cinema, que impacta de forma ímpar o seu espectador. Lars von Trier prova que não é necessário orçamentos milionários para fazer arte, a história é o motor de Dogville. Nenhuma película e diretor conseguem capturar tão bem o que há de mais profundo e vil no ser humano. Termino esse texto com uma passagem de Lucas 7:47, adaptada em um trecho de Crime e Castigo (1866), que sintetiza parcialmente a ideia central do filme: “Portanto, eu digo, os muitos pecados dela lhe foram perdoados; pois ela amou muito. Mas aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama”.

Nota: 10
Henrique Gregory Gimenez,
Engenharia de Computação, 2º ano.


Leitores, nós temos um problema – melhor dirigida seria a constatação se endereçada aos fãs de cinema, mas haveria nisto um quê excessivo de frivolidade e de pretensão… duas transgressões a que não se promete qualquer perdão no desenrolar de meu breve protesto. 

Pois bem, é com pesar desmoralizante que alerto: este tal Dogville (2003) é um filme que tem suas três horas!. Aqui planto a graciosa deixa para todos os arquejos sobressaltados de minha claque:
A duração desvairada, não é difícil argumentar, lidera hoje os pecados capitais cinematográficos. Nem sempre o fez, é fato; Cleópatra (1963) é um transgressor integral, mas destaca-se por sua escala faustosa muito mais do que pelas suas quatro horas. Atualmente, os milhares de pessoas se conjuram a um estalar digital de dedos, e por isso demoveu-se o martírio logístico do panteão de crimes. Outro processo muito facilitado foi o de edição, e na contradição deste feito com os ritmos progressivamente desleixados dos filmes atuais gerou-se o Inimigo Número 1. Hoje enfrentei Dogville. Ontem, Tár (2022). Na semana passada, The Fabelmans (2022). Meu amor pelo conteúdo desses longas varia com bastante liberdade, mas a tendência geral… ameaço mal dormir à noite!

O que faz-lhes crer que qualquer filme – digo, um filme qualquer – mereça três horas do meu tempo? Assim, dadas de bom grado, os frutos deleitosos de minha generosidade? E ainda um preço alto e tantas vezes injustificado! Ninguém ganha com isso; o autor produz uma obra mal-acabada, eu desperdiço minha tão finita juventude, aos cinemas são permitidas menos sessões e menor rentabilidade…

A moda há de ter começado com Titanic (1997), recipiente de anos do título de meu indiscutível filme favorito. Titanic, por todos os seus predicados, não é um filme profundo. Seu combustível não são diálogos estacionários, seus silêncios fazem questão de serem breves. É este um filme que pode ter três horas. Já uma densa (e notoriamente pretensiosa) reflexão de três horas… até nosso redentor preferiria a cruz a isso! Pergunto-me: será que Jesus morreu para perdoar a indulgência autocongratulatória dos cineastas modernos??? Meu filme favorito hoje em dia, Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), é sim de uma introspecção silenciosa. E por isso ele tem duas horas, redondas! É tão valoroso conduzir o espectador languidamente e deixá-lo à interpretação individual e posterior, que recusemos esse arrastar forçoso do cinema dos últimos anos!!!

Enfim, com a maturidade tenho me sensibilizado ao talento da concisão (que às vezes pode também me eludir!) e reconhecido que a afirmação mansa, quieta, tão comumente tem uma função mais agregadora que os grandes discursos sofistas. 

Tanto me exaltei que relevo a pretensão exorbitante do design de produção de Dogville, de modo a não perder de uma tacada só toda a parca credibilidade que me resta. Ah, e também… não quero me estender. 

Nota: 6
Laura Carmieletto Saran,
Engenharia Química, 2º ano.


Sou daquelas pessoas meio bobas, voluntária e involuntariamente, que espera sempre o melhor dos indivíduos e tenta ver tudo pela lente mais otimista possível. Gosto de comédias, romances ou pelo menos algo com final feliz. Pois veja só, esse filme acabou comigo: são três longas horas de crescente desumanidade, dor e violência, em que toda esperança em que me agarrei desmoronou, deixando-me no fundo de um poço sem fundo. 

Comecei o filme interessado em conhecer as personagens e entender sua história, e inocentemente fui seguindo pela primeira hora praticamente tranquilo, numa história sobre acolhimento. Aos poucos, o que parecia tranquilo foi ficando dúbio, desconfortável e se seguiu assim a segunda hora. Na terceira hora já não havia espaço para dubiedade, o filme se tornou a própria barbárie, o horror. A finalização, que a princípio parecia trazer um final ao menos levemente otimista quanto ao futuro, só nos trouxe mais desumanidade. Acaba que em Dogville, o mais humano era o cachorro.

A atuação de Nicole Kidman como Grace, a protagonista do filme, é fenomenal. Faz com que nos compadeçamos pela personagem durante a maior parte da trama. Também vale ressaltar a inusitada construção do cenário único, em que as casas são definidas apenas por seus limites no chão e seus detalhes, sendo possível ver todos os personagens em qualquer ponto da cidade. 

Porém, como nem tudo é maravilha, eu senti que a obra exagera na selvageria das pessoas (ou eu que sou muito inocente). Parecem todos tirados de uma prisão para psicopatas e sociopatas, o que me fez perder um pouco a tangibilidade e consequentemente o impacto da obra em mim acaba diminuto.

Para quem possui certa sensibilidade à violência, não sei se esse filme é uma boa recomendação. Já para quem aguenta um pouco mais e tem três horas de sobra (e nada mais leve para assistir), serve sim como uma opção.

Nota: 7
Bruno Pereira dos Santos,
Engenharia Civil, 2º ano.


Ousadia, um roteiro impactante e ambição parece ser a receita do sucesso para uma obra marcante e digna de incontáveis elogios. Infelizmente, sou incapaz de tecê-los a Dogville. 

Sob o risco de aparentar intelectualmente incapaz de apreciar um filme feito para ser tão genial, digo aqui que, no fim das contas, ele é apenas pretensioso e, em vários momentos, muito difícil de assistir. Embora Nicole Kidman tenha se entregue ao papel da protagonista com uma atuação impecável e a premissa do enredo seja certamente de grande potencial, nada disso é capaz de salvar o filme do fardo de ser, arrisco dizer, até rude em passar sua mensagem. 

Recomendaria a vocês, leitores, assistirem para tirarem suas próprias conclusões, mas posso afirmar que existe uma lista gigantesca de coisas melhores a se fazer com três horas de suas vidas. Contudo, se quiserem arriscar, é certamente uma experiência. 

Nota: 3
Yasmin Ramos de Azevedo,
Engenharia Civil, 2º ano.

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