Condenado antes de julgado: mais de 6 anos sem Cancellier, ex-reitor da UFSC

Vestes talares de Cancellier, em cerimônia em sua homenagem (Reprodução: UFSC)

 

Por Diego Roiphe de Castro e Melo (Engenharia Civil, 2º ano)

“Toda morte é assassínio.”, Bernardo de Carvalho na voz de Buell Quain, em Nove Noites.

Catorze de setembro de 2017. Na Folha de S. Paulo: “Reitor da UFSC é preso em operação que apura desvio de verba em cursos”. No Bom Dia Brasil: “[…] mas é roubalheira pra tudo que é lado, né?” A cifra: 80 milhões. A “quadrilha” apontada como culpada: reitor e outros seis do corpo docente da Universidade Federal de Santa Catarina. 

Foi assim, há mais de seis anos, que foi deflagrada pela Polícia Federal a Operação Ouvidos Moucos. O nome, segundo a PF, foi “uma referência à repetida desobediência da gestão da universidade aos pedidos e recomendações dos órgãos de fiscalização e controle”. O reitor Luis Carlos Cancellier de Olivo e os professores foram, então, presos, sem saber o porquê e sem provas concretas.  

Para a juíza do caso, Janaína Cassol, o espetáculo cinematográfico da operação – que seguia os moldes e era um desdobramento da Lava Jato –, a mídia propagando acusações sem provas como sentenças absolutas, a prisão de 36 horas e as revistas íntimas não foram humilhação e desrespeito suficientes para com os investigados. Não. Ainda foram proibidos, após libertos, de frequentar a Universidade Federal de Santa Catarina e de se encontrar com seus colegas de profissão de vida. 

Importante ainda comentar que a soltura só ocorreu com a troca da juíza responsável pelo caso. A substituta, Marjorie Freiberger, assim que assumiu, notou o absurdo e a arbitrariedade da prisão – exigida pela delegada Érika Marena –, acatando o pedido de habeas corpus da defesa. Manteve, porém, a proibição de adentrarem a UFSC, como determinado previamente por Cassol.

Cancellier, ou Cau – como era apelidado –, se via solitário, já condenado, antes mesmo de qualquer julgamento, qualquer defesa. Ele, há pouco mais de um ano ocupando a reitoria e já tão querido entre seus colegas e alunos. Ele, que fazia cumprir a proposta de sua chapa de apoiar e incentivar a diversidade na UFSC. Ele, sempre aberto ao diálogo, levando a tolerância e a empatia como lemas; “uma pessoa serena, que não era tanto de protocolo”, como diria assertivamente Jair Quint, fotógrafo e servidor da universidade. Ele, agora vítima de uma acusação sem sentido, sem provas. Uma acusação que, na realidade – informação pouco divulgada na época –, era de obstrução de justiça quanto à investigação de desvio de dinheiro para cursos de educação à distância do programa Universidade Aberta do Brasil. E, detalhe: os supostos desvios teriam ocorrido na gestão anterior. Por que Cancellier obstruiria uma investigação – da qual, segundo seu irmão Acioli, ele nem tinha conhecimento –, em benefício próprio, por um crime que não cometeu? E a cifra também foi falsamente divulgada: era de, na verdade, 3 milhões, sendo os 80 milhões divulgados o orçamento do programa como um todo.

A acusação era, repito, sem provas, baseada em apenas dois depoimentos – de uma professora e do corregedor da universidade. Mas isso não impediu que Cancellier já fosse condenado: a imprensa (inclusive seus antigos colegas jornalistas) em muitas manchetes e notícias irresponsavelmente divulgava-o como líder de uma organização criminosa. Além disso, ele não poderia mais frequentar a universidade, defronte de seu apartamento, pela qual dedicara e dedicava sua vida.

 Cau nasceu em 13 de maio de 1958, em Tubarão, SC, filho de um operário e de uma costureira, tendo dois irmãos, Acioli e Julio. Cursou Direito na própria UFSC, em plena Ditadura Militar, se envolvendo com o movimento estudantil da universidade na luta pela Redemocratização, apresentando desde cedo a paixão por ideais que levaria por toda a vida: democracia, igualdade e ação pela mudança. Parou os estudos e, por um tempo, se dedicou inteiramente à carreira de jornalista. Em 1995, porém, voltou definitivamente para a federal catarinense, terminando a graduação, concluindo com mérito seu mestrado e doutorado e tornando-se professor da instituição em seguida. Uma ascensão acadêmica rápida, como mente brilhante e visionária (não só na área do Direito) e incrível ser humano. Venceu a eleição para reitoria em 10 de maio de 2015, na chapa “A UFSC pode mais”, ao lado de sua vice Alacoque Lorenzini Erdmann, que, à época, já tinha mais de 40 anos de universidade.

“Por mais que as dificuldades surjam, uma palavra de conciliação, de abertura e de diálogo sempre pode trazer uma luz.” Foram essas as palavras que pautaram o discurso de posse de Cancellier e que demonstravam seus valores e sua intenção de administrar sempre na base do diálogo e da conversa pacífica. Em sua gestão, colocava em prática sua meta de descentralização do poder de decisão, contando com a participação de todas as Unidades e Centros da universidade, além da busca por excelência acadêmica e por proximidade com os discentes. “Uma das coisas que chamava atenção era que as salas dele estavam sempre abertas”, afirmou Leonardo Moraes, ex-aluno da UFSC, entrevistado para o documentário “CAU”. Um reitor que dispensava o terno e a gravata, que nunca se punha acima dos estudantes, que sempre respeitava seus colegas. “No Direito, a gente abre mão da violência, a gente abre mão da guerra, pra achar a solução mediada dos conflitos. A administração é isso”, contou em entrevista.

Foi no dia 14 de setembro de 2017 que ele foi preso. Se encontrava destruído psicologicamente, como qualquer inocente diante de enormes e injustificadas acusações e de um espetáculo midiático horrendo. Sentia-se extremamente sozinho, exilado em sua própria casa, triste e injustiçado, como deixa transparecer em sua última carta. 

Resultado de uma investigação desumana e irresponsável, encabeçada pela delegada Érika Marena, que teve papel de destaque na Lava Jato e que foi acusada de falsificar depoimentos após o escândalo da Vaza Jato; e de uma sentença sem julgamento, decretada pela juíza Janaína Cassol, hoje investigada por atuação ilegal em outro caso mais recente.

Dia 2 de outubro do mesmo ano, apenas dezoito dias após a prisão, Cancellier foi ao Beiramar Shopping, como havia feito no dia anterior, para, no cinema, assistir ao filme sobre a operação Lava Jato – que erguia ao pedestal de herói, não somente o ex-juiz Sergio Moro, mas também a delegada Érika Marena. Desta vez, porém, ele saía para não voltar. Imerso em inimagináveis agonias, em sentimentos de terrível tristeza e solidão, humilhado, destruído, levava no bolso um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”

Foi um dos mais tristes e impactantes acontecimentos na recente história universitária brasileira. Resultado de uma operação que atacou a autonomia e a instituição da Universidade Pública; que atacou a vida de alguém que viveu e morreu por essa instituição.

Espero que hoje, seis anos após a morte de Cancellier, possamos relembrá-lo como essa pessoa propositiva, paciente, humilde, de bom senso, cordial, aberta, colaboradora, que valorizava a pluralidade e que respeitava a diferença; que possamos reconhecer seu legado como reitor à serviço dos alunos e da universidade, prezando sempre pela diversidade e pela colaboração. E que lembremos os nomes daqueles que injustiçaram o Cau, lutando para que a justiça siga sendo feita – como foi, com o arquivamento da acusação contra ele pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em junho do ano passado. Lutemos por uma justiça sem abusos, humana e dentro da lei. Defendamos um jornalismo investigativo e crítico, como também nós devemos sempre ser, sem espetáculos e acusações falsas e baratas.

Denunciemos qualquer tentativa de seguir os moldes da Operação Lava Jato, que atirava primeiro e perguntava depois, não se importando com quem e como os tiros iriam atingir. Que prendia, constrangia, humilhava e destruía primeiro, para depois tentar encontrar e apresentar provas que justificassem a ação. Um sistema que tinha como idealizadores Moro – que teve a pouca vergonha de dizer que a morte de Cancellier “foi um infortúnio imprevisto na investigação” – e Deltan Dallagnol – que, em mensagem a Érika Marena, disse que os que criticam a Operação Ouvidos Moucos eram “um bando de, perdoe-me, imbecis.”

Falemos sempre mais alto, em busca da justiça humana, para que ela seja cumprida e que recaia sobre os injustos, aqueles que descumprem as leis e os direitos de outrem. Estejamos atentos e estendamos nossas mãos àqueles injustiçados, para que ninguém mais seja morto pelas palavras de covardes, como disse Acioli. Que possamos, assim, honrar o Cau, não nos esquecendo dele, nunca. 

Não poderemos devolvê-lo à vida, mas podemos dar vida aos valores dessa vida interrompida. 

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