Quem fundou a Escola Politécnica? A resposta que todos dão, de cara, é Antônio Francisco de Paula Sousa, em 1893. Se, por um lado, temos a quem reverenciar quando se trata do início de nossa Escola, por outro, a participação de diferentes profissionais nesse processo de fundação acaba não sendo lembrada. Uma dessas participações que vale a pena destacar é a de um dos dois engenheiros responsáveis pela comissão que redigiu o Regulamento de Fundação da Poli (que descrevia como seria o funcionamento da, na época, Escola Polytechnica e quais eram os cursos e as disciplinas a serem lecionadas em cada semestre): Teodoro Fernandes Sampaio, protagonista de uma história ímpar no século XIX.
Teodoro Fernandes Sampaio nasceu em 1855 em Santo Amaro, município da Bahia. Filho de uma mulher escravizada, Domingas da Paixão, e de um padre, Teodoro teve sua alforria — junto à de sua mãe — comprada por seu pai, que também lhe concedeu oportunidades de estudar. Aos nove anos, começou sua jornada acadêmica no Rio de Janeiro, ao ser matriculado pelo patriarca em um colégio interno. Apesar do padre ter adoecido durante o internato e não poder manter Teodoro estudando, o diretor do colégio permitiu que este continuasse e, em retribuição, ele trabalhava como professor, o que continuou fazendo mesmo após formado.
No ano de 1874, começou seus estudos em engenharia civil na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Ingressou, também, no Museu Nacional sob a função de desenhista. Esse desenvolvimento do senso estético é algo que Teodoro valorizou ao longo de sua vida profissional, entendendo a importância do desenho para as atividades da engenharia civil, ainda mais quando voltadas à arquitetura. Formou-se engenheiro civil em 1877, com 21 anos de idade.
Sua passagem pela faculdade fez com que, além das habilidades de engenheiro e desenho, Teodoro se desenvolvesse também na escrita. Aos 18 anos, escreveu “Vôos da Mocidade”, um manuscrito de mais de 250 páginas. No geral, o engenheiro se desenvolvia como um verdadeiro polímata, podendo, ao longo de sua carreira, ser descrito como engenheiro, geógrafo, cartógrafo, urbanista, historiador, filólogo, tupinólogo, arquiteto, sociólogo, político literato e artista.
Após formado, retorna a sua cidade natal para rever a família e, ao longo dos próximos anos, compra a carta de alforria de seus três irmãos. Em 1880, integra à Comissão Hidráulica do Império, que buscava melhorar o porto de Santos e a navegação do São Francisco. Teodoro era o único brasileiro que integrava essa Comissão.
No ano de 1893, após o projeto de lei de Paula Sousa de criação da Escola Politécnica ter sido aprovado, Teodoro Sampaio, junto a Francisco Sales de Oliveira, redigiu o regulamento que organizaria a Poli. O regulamento foi aprovado pela Lei Estadual, nº 91, de 24 de agosto de 1893. Assim começou a nossa Poli, com 7 professores, 31 alunos e 28 ouvintes.
Nos anos seguintes, Teodoro Sampaio foi membro-fundador do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, sendo o responsável pela edificação de seu prédio. Além disso, foi nomeado engenheiro-chefe da Repartição das Águas e Esgotos de São Paulo e, em 1898, também se tornou sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, tornando-se, enfim, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1902.
No decorrer de sua vida, presidiu órgãos como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e produziu obras de grande importância nacional. Entre suas obras, devemos citar “O tupi na geografia nacional”, “O rio São Francisco e a chapada Diamantina”, “Atlas dos Estados Unidos do Brasil” e “Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil”. São obras que permitiram grande desenvolvimento histórico e geográfico para o Brasil, auxiliando, por exemplo, Euclides da Cunha a redigir “Os Sertões”. Faleceu em 1937, deixando um legado imenso para diferentes áreas científicas e sendo homenageado em nomes de ruas e cidades.
A história de Sampaio é inspiradora, carregada de méritos. Porém, antes de encaixá-lo em uma suposta prova da meritocracia, é importante a observação de que Teodoro é, além de um exemplo, uma exceção. O ora engenheiro, ora geógrafo teve, durante sua trajetória, oportunidades que, infelizmente, quase nenhuma pessoa preta em seu século pôde desfrutar num país escravocrata. Na época em que seu pai o matriculara no colégio, incontáveis crianças nasciam em senzalas, filhas de homens brancos ou “mestiços” que sequer reconheciam suas descendências, antes as enxergavam como novos escravos ou, em casos “melhores”, empregados. Durante seus trabalhos de engenharia, contemporâneos sonhavam com o dia em que acumulariam dinheiro suficiente para comprar sua alforria. Enquanto lutava pelo futuro do país realizando projetos da coroa, jovens batalhavam corpo a corpo em busca de direitos humanos básicos.
O politécnico vitoriano de fato merece reconhecimento por todo o seu esforço em uma época na qual a ascensão social tinha quase como requisito ser branco. Mas o início de sua história já o coloca em uma posição privilegiada em comparação à maioria dos afro-brasileiros da época.
Mesmo após a abolição da escravatura com a Lei Áurea em 1888, o Brasil levou muito tempo para começar a adotar políticas que buscassem reparação histórica, o que ocasionou em diferenças financeiras ligadas a fatores étnicos presentes até hoje. A título de exemplificação, enquanto brancos representam 70% dos mais ricos do país, negros estão entre 75% dos mais pobres. Deste modo, é possível afirmar: mesmo no século XXI, uma pessoa preta alcançando posições merecidas ainda não se tornou regra no país de maioria negra na população e minoria afro nas elites. Mas há esperança, inclusive, onde nosso querido “polytechnico” fundou: a Poli, junto às outras faculdades da Universidade de São Paulo, adota desde 2018 o sistema de cotas raciais para seus cursos de graduação. Embora essa adoção seja tardia, já é uma evolução na universidade destaque da América Latina. Graças às cotas, no ano presente (2021), quase 52% dos ingressantes (ou, no popular, bixos/bixetes/bixes) vieram de escolas públicas, dos quais 44,1% pertencem à categoria PPI (pretos, pardos e indígenas), um recorde desde a aprovação dessa política inclusiva na universidade. Quem sabe, esse número não seja ainda maior em um futuro próximo no qual você, cara pessoa que está lendo este artigo, possa estar? Se por um lado, porém, os números animam, por outro, o sistema é por vezes duramente criticado por quem acredita que possa privilegiar minorias. Mas, em uma sociedade que privilegia determinado grupo desde a invasão às terras do Brasil na Idade Moderna, a cota vem como uma tentativa de equidade e mudança na dinâmica de privilégios e prejuízos. Compare: em 2018, primeiro ano dessa política na USP, 39% dos ingressantes pertenciam à categoria PPI, contrastando com 2015, quando 6 dos 10 cursos mais concorridos da Fuvest não contaram com nenhum ingressante preto.
Pessoalmente, eu — Murilo — acredito que Teodoro Sampaio teria orgulho se viajasse para o presente e visse o crescente sucesso da política de inclusão na faculdade que ele ajudou a criar. Ao mesmo tempo, imagino o desapontamento do viajante ao notar que após 84 anos de sua morte o país ainda sofre com um contexto de diferença racial e vista grossa por parte de pessoas que poderiam estar contribuindo na construção de um futuro realmente igualitário. Descanse em paz, Teodoro Fernandes Sampaio. Descansem em paz, André e Antônio Pinto Rebouças. Descansem em paz todos os engenheiros e outras personalidades negras que lutaram, cada qual do seu jeito, por um Brasil que um dia iremos alcançar.
Murilo Ferreira Noronha,
Engenharia de Produção, 1º ano.
Parabéns aos autores pelo resgate histórico.
Parabéns pelo artigo, Murilo.
O Teodoro Sampaio, sem dúvida, merece um reconhecimento na historia (e no site) da Poli.
Com certeza, deveria ser lembrado , como um dos fundadores da Politécnica. Theodoro Sampaio.